Fonte: itforum
Por Marcelo Batista Nery*
Iniciativa INSPIRE visa fornecer orientações e boas práticas para diminuir o risco de violência infantil e responder a esse grave problema
No Brasil, é notável a falta de familiaridade com os documentos da Organização Mundial da Saúde, mesmo aqueles mais acessíveis e disponíveis em português. No âmbito do setor que se concentra no uso de tecnologia para modernizar e melhorar os serviços públicos, a escassez de profissionais capacitados para avaliar e, quando oportuno, tirar proveito desses documentos é um fato inegável. Um exemplo concreto dessa realidade é o INSPIRE: Sete Estratégias para Pôr Fim à Violência contra Crianças, uma iniciativa que visa fornecer orientações e boas práticas para diminuir o risco de violência infantil e responder a esse grave problema.
INSPIRE fundamenta-se em um conjunto de diretrizes formuladas por especialistas para auxiliar países e comunidades a alcançarem as metas prioritárias dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável 2030 (ODS 2030), estabelecidos pelos Estados Membros da ONU. Os objetivos abrangem diversos propósitos, incluindo a redução de diversas formas de violência. Tal propósito implica na adoção de medidas concretas para proteger as crianças e oferecer apoio tanto às vítimas como aos seus pais e cuidadores.
As sete estratégias do INSPIRE fornecem uma estrutura que inclui objetivos específicos, justificativas, referências aos ODS 2030, evidências, abordagens pragmáticas e potenciais impactos. Reconhece-se que a prevenção eficaz da violência requer uma abordagem macro/global, micro/local e multifacetada.
A conexão entre saúde pública e violência ganha destaque e relevância em diversas áreas, abrangendo perspectivas multidisciplinares e interdisciplinares. Isso visa uma melhor compreensão de uma série de fenômenos psicológicos, como precipitadores e/ou estressores, motivações e métodos, bem como aspectos sociais, como morbidade, mortalidade e os fatores condicionantes dessas duas medidas.
Uma das principais implicações dessa conexão é o comprometimento da governança, dos investimentos, da capacidade produtiva e do bem-estar das gerações futuras. O impacto socioeconômico da violência é substancial, sendo especialmente significativo em nações menos desenvolvidas, onde as políticas tendem a perpetuar desigualdades e as normas legais podem contribuir para um ambiente onde as violações são toleradas ou até mesmo normalizadas. Isso nos leva à dimensão tecnológica.
Observamos rápidos avanços na compreensão e prevenção da violência contra os jovens. Já existem recursos disponíveis para adotar medidas imediatas, eficazes e sustentáveis para prevenir esse tipo de violência. Com base no INSPIRE, surge a oportunidade de desenvolver soluções e influenciar positivamente uma variedade de desafios relacionados às crianças. Assim, propomos a ideia de que lidar com a violência contra elas também requer a implementação de tecnologias digitais, junto a novas perspectivas.
Atualmente, crianças e adolescentes estão imersos no ambiente digital. Embora os jovens constituam a parcela mais conectada da população, muitas das plataformas, redes sociais e aplicativos que eles utilizam foram, na verdade, desenvolvidos para adultos, sem considerar os riscos associados ao uso por um público infantil. Quando os seus direitos são levados em conta, o espaço digital pode ser adequado e humanizado. Na prática, esse espaço será seguro quando estiver livre de arbitrariedades e abusos, não incentivando que fiquem constantemente ligadas às telas e proporcionando experiências educativas, criativas e lúdicas.
Incialmente, dois pontos são cruciais. Primeiro, a acessibilidade, que garante o acesso ao ambiente digital para todos, especialmente para as crianças com necessidades especiais, e as tecnologias assistivas, que contribuem para desenvolver e ampliar as habilidades dos portadores de deficiência(s) em qualquer fase da vida, embora, quando utilizadas precocemente proporcionem melhores resultados. O segundo ponto é a segurança contra o acesso a conteúdo inapropriado e o vazamento de dados, já que os jovens estão sujeitos a frequentes ameaças, como exposição indevida (inclusive a estratégias de marketing), cyberbullying e predadores online.
Então, notamos que apesar de sua alta prevalência, a violência contra crianças frequentemente ocorre de forma oculta, sendo invisibilazada ou subnotificada. Mais plataformas podem ser criadas para fornecer um canal seguro para o registro de casos de infrações e crimes. Novos aplicativos podem ajudar na denúncia de casos de forma anônima, reduzindo subnotificações e facilitando o acesso à assistência e justiça para as vítimas. Diversos sistemas de reconhecimento e análise podem identificar sinais de violência em fotos, vídeos ou áudios compartilhados online.
Organizações governamentais, ONGs ou grupos comunitários, podem oferecer serviços de linha direta para permitir que vítimas relatem casos de violência de modo acolhedor. Audiências por videoconferência no Sistema de Justiça Juvenil podem ser aperfeiçoadas. Tecnologias como blockchain podem ser exploradas para garantir procedência e autenticidade das informações relacionadas as ocorrências de abuso infantil.
Ainda que o volume de dados cresça exponencialmente, a qualidade da informação é um dos mais importantes aspectos a serem considerados. Assim sendo, combinação dos dados policiais e de saúde em sistema de informação permite a identificação de padrões de violências e predição mais precisa de “áreas críticas”. Ferramentas computacionais podem sobrepor camadas de informações e contribuir para a concepção de ambientes seguros, sustentáveis e estimulantes. Processos apoiados em ferramentas automatizadas podem fornecer subsídios fundamentais para o desenvolvimento de estratégias sociais e de saúde pública, tais como programas relativos ao uso nocivo de álcool e drogas ilícitas, e promover sociedades pacíficas e inclusivas.
Inovações adequadas ao empreendedorismo, englobando o microfinanciamento, que assegurem equidade de acesso aos recursos econômicos, especialmente para os pobres e vulneráveis, podem ser de grande auxílio. No entanto, são mais eficazes quando também empoderam. Esse empoderamento, compreendido em sentido amplo, engloba desde uma maior capacitação vocacional até o aumento da autoestima dos jovens.
Além disso, ferramentas computacionais devem auxiliar na definição de estruturas para o desenvolvimento de habilidades para a vida, incentivando a educação formal e a cidadania, bem como a identificação e prevenção de casos de assédio, inclusive em ambientes domésticos ou de trabalho. A Inteligência Artificial, tão presente em inúmeros dispositivos e serviços, pode e deve ser utilizada em prol dos direitos das crianças e para protegê-las.
Torna-se evidente que há uma oportunidade significativa e uma responsabilidade igualmente importante de impactar positivamente uma ampla gama de desafios relacionados à saúde e segurança na infância. Além das abordagens convencionais, como a implementação de políticas e programas de prevenção, somos cada vez mais capazes de reconhecer a importância das tecnologias nas abordagens da violência contra crianças e adolescentes. Garantir a proteção dos jovens com absoluta prioridade em todas as áreas e ambientes, inclusive no digital, é indispensável. Essa garantia é também uma responsabilidade das empresas desenvolvedoras de softwares e serviços online. Conforme avançamos, é fundamental compreender que detemos o poder de intervir e modificar um cenário preocupante, no qual inocentes enfrentam violências constantes e são forçados a lidar com as repercussões em sua saúde e interações sociais diárias.
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*Pesquisador no Think Tank da ABES e na Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), coordenador de Transferência de Tecnologia e Head do Centro Colaborador da OPAS/OMS (BRA-61) do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.