Por Natália Marroni Borges*
Não estamos presenciando uma situação inédita, mas a repetição de um ciclo que já percorreu séculos, sempre se remodelando. Revoluções têm seus momentos de destaque, e a nossa – a digital – é aqui e é agora. No cerne desse turbilhão (ou na vanguarda, dependendo de como percebemos as oportunidades), somos desafiados a encarar os fatos com a maior amplitude possível.
A realidade de que o mundo digital “está aí” é, em grande parte, um fato consumado. Temos trilhado esse caminho por, no mínimo, três décadas, construído a partir de um simples “WWW” e impulsionado por incontáveis oportunidades que emergiram quando a voz humana se libertou das fronteiras físicas e das mídias tradicionais.
Desde então, temos sido inundados por um oceano de inovações e rupturas que antes seriam inconcebíveis. Grandes empresas, cujos modelos de negócio são frutos dessa digitalização – Uber, AirBnB, Netflix, Meta, Waze, Twitter, Amazon, Spotify – são exemplos de uma realidade inegável, na qual as plataformas digitais têm sido protagonistas das maiores mudanças que experimentamos nas últimas décadas. A dinâmica se repete: a plataforma é lançada, usuários aderem e outras disciplinas tentam acompanhar seus efeitos. Basta lembrar do “boom” do Orkut, que antecede consultórios médicos lotados com casos de ansiedade, depressão, bullying, assédio e transtornos alimentares, pois não estávamos preparados para termos a vida invadida num modelo 24×7 (e ainda tenho dúvidas se hoje estamos). Como poderia (ou melhor, pode) a psicologia antever o resultado do uso exagerado desta (e de outras) plataforma(s)?
Não muito distante, o Twitter, com seus modestos 140 caracteres, tem redefinido a forma como as pessoas se informam, formam suas opiniões e se comportam (online e offline). No Brasil, já presenciamos pelo menos duas eleições tumultuadas, onde, inclusive, o uso estratégico da tecnologia fazia parte do jogo, enquanto seus impactos – especialmente legais e sociais – só agora começam a ser discutidos de forma mais efetiva e, mesmo assim, ainda precisando de muito aprofundamento para reduzir impactos sem causar novos danos.
Nos últimos tempos, a discussão tem sido em torno da inteligência artificial, que é, aparentemente, “o assunto do momento”. Há debates fervorosos sobre ética, legislação, o futuro da educação e do trabalho, muitas vezes com uma pressa desproporcional à profundidade dos temas. As vozes das Big Techs oscilam entre “vamos revolucionar o mundo” e “vamos dar um passo atrás”, enquanto nós, mortais, aguardamos ansiosos e curiosos pelo próximo lançamento tecnológico que irá transformar nossas vidas. É curioso notar que a inteligência artificial é um tema que já está na agenda há décadas; será que realmente precisávamos esperar o lançamento do ChatGPT para abrir espaço e dar atenção a discussões tão relevantes em outras disciplinas que sabidamente seriam afetadas pela Inteligência artificial generativa, como educação, sociologia, direito, filosofia?
Infelizmente, temos falhado em adotar uma postura proativa e estratégica frente ao potencial transformador das soluções tecnológicas que nos são apresentadas constantemente. É evidente que a marcha da tecnologia não vai parar. É igualmente claro que o ritmo de mudança só se acelera. Torna-se, portanto, imperativo criar vias de agilidade, principalmente na esfera pública, para que possamos, se não nivelar, ao menos aproximar essas disciplinas, dado que este descompasso temporal tem se mostrado prejudicial a todos.
Tudo isso indica a necessidade premente de abordar a tecnologia com um olhar abrangente, antecipando seus impactos e preparando todas as disciplinas para acompanhar o ritmo acelerado da inovação. Com ações estratégicas e baseadas em foresight, poderemos trabalhar para que que as pessoas e a sociedade como um todo não fique à mercê das constantes mudanças, mas sejam atores ativos e bem-preparados para participar e se beneficiar da revolução digital em curso.
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*Pesquisadora no no Think Tank da ABES, Pesquisadora membro do grupo IEA Future Lab (vinculado à Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS), Pós-doutoranda em Inteligência Artificial e Foresight e professora na UFRGS