Fonte: it forum
Por Camila Tecchio*

Medidas trazem efeitos indiretos sobre contratos, precificação e integridade da propriedade intelectual no ecossistema digital

 

Em um cenário em que a economia global se apoia cada vez mais em ativos digitais e intangíveis, mudanças tarifárias recentes envolvendo produtos de diferentes origens reforçam que os efeitos vão além da esfera comercial, alcançando também a segurança jurídica e a previsibilidade nos fluxos de inovação tecnológica.

No setor de software, cujos ativos principais são regulados por marcos específicos de propriedade intelectual (como as Leis nº 9.609/98 e nº 9.610/98), os impactos dessas medidas podem ser especialmente significativos. Isso se deve à crescente integração do software a dispositivos físicos, plataformas híbridas e serviços em nuvem, frequentemente sujeitos a regulação aduaneira e tarifária.

Implicações contratuais e comerciais

Mudanças tarifárias tendem a impactar contratos internacionais de licenciamento, principalmente aqueles que envolvem transferência de tecnologia, sublicenciamento ou serviços agregados. Empresas que operam com softwares embarcados ou que integram soluções físicas e digitais já enfrentam desafios na renegociação de termos contratuais e na adequação de seus modelos de precificação, com o objetivo de manter a competitividade global.

Cláusulas como material adverse change (MAC), força maior e reequilíbrio contratual vêm sendo reavaliadas por departamentos jurídicos, especialmente em contratos que envolvem infraestrutura de TI no exterior, hospedagem em servidores internacionais ou dependência de componentes físicos. A ausência de previsões específicas para cenários tarifários pode aumentar o risco de litígios, inadimplemento involuntário ou perda de receitas.

Reflexos na proteção da propriedade intelectual

Mudanças abruptas no ambiente regulatório e comercial internacional podem afetar indiretamente a integridade da propriedade intelectual. Em contextos de maior instabilidade, historicamente observa-se um aumento do uso de soluções não autorizadas, como softwares pirateados ou licenciamentos indevidos, além de práticas como reengenharia e desrespeito a proteções técnicas (DRM). Esse fenômeno pode fragilizar os mecanismos de proteção autoral, com impactos relevantes sobre a segurança jurídica e a sustentabilidade da inovação.

No Brasil, onde ainda há desafios significativos na regularização do uso de software — com estimativas apontando para mais de 25% de softwares em uso sem licença adequada —, medidas que elevem os custos operacionais podem contribuir para ampliar esse cenário.

Recomendações para mitigar riscos e fortalecer a resiliência

Diante deste contexto, organizações do setor de software podem se beneficiar de uma atuação estratégica em quatro frentes principais:

    • Revisão jurídica de contratos internacionais, com a inclusão de cláusulas específicas para situações tarifárias, reequilíbrio econômico-financeiro e resolução de disputas por arbitragem.
    • Fortalecimento da governança sobre ativos de software, com auditorias internas, gestão rigorosa de licenças e uso de sistemas avançados de DRM.
    • Diversificação geográfica de mercados e infraestruturas tecnológicas, como forma de mitigar riscos associados a barreiras comerciais e instabilidades regionais.
    • Engajamento institucional e internacional, por meio de articulação com entidades do setor, participação em fóruns multilaterais e apoio a organismos que promovam previsibilidade e segurança jurídica no comércio digital.

Mudanças no cenário tarifário global reforçam a necessidade de adaptação contínua por parte das empresas que operam em mercados altamente integrados e regulados. Para o setor de software, a proteção da propriedade intelectual demanda não apenas mecanismos técnicos ou contratuais, mas também uma abordagem estratégica que contemple o fortalecimento da governança jurídica, a diversificação de mercados e a construção de um ambiente de negócios mais previsível e seguro para a inovação.

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*Líder do Comitê de Propriedade Intelectual da ABES (Associação Brasileira das Empresas de Software) e Legal Counsel da Cyncly

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