Por Edelvicio Souza Junior*

A Cúpula Mundial sobre Inteligência Artificial (IA) para o Bem (“AI for Good Global Summit”), organizada pela União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência da ONU especializada em tecnologia, esteve reunida no último mês para debater a necessidade de elaboração de normas que norteiam o uso das soluções IA para o bem da humanidade. Na ocasião, um robô humanoide afirmou que podem “liderar com mais eficiência que os governantes humanos”.

Enquanto pode haver ameaças claras para a sociedade, é provável também que haja oportunidades ainda sequer imaginadas. Em um estudo global da McKinsey, estima-se que a IA gerará 13 trilhões de dólares no mundo até 2030. No mesmo ano, é esperado um aumento de 5% no Produto Interno Bruto (PIB) da América Latina em virtude da IA. Além disso, há uma expectativa que o uso de aplicações com IA em saúde cresça 38% na região até 2027.

No Brasil, as pesquisas na área são realizadas com os mais diversos objetivos, sendo que muitas delas atuam no âmbito da linguagem neural, que simula o comportamento humano em máquinas. Edelvicio Souza Junior, especialista em Inovação Industrial da Embrapii, comenta como os pesquisadores brasileiros estão lidando com as questões éticas e quais são os desafios para o futuro.

Tem causado muita polêmica a utilização de IA na substituição de mão de obra, sendo que algumas ocupações poderão acabar ou reduzir drasticamente. Você acha que o mercado em torno das soluções de IA poderá suprir essa demanda que surgirá no futuro?

Esse é um tema polêmico e há defensores da tese que, ao mesmo tempo que as aplicações baseadas em algoritmos de Inteligência Artificial (IA) irão acabar ou mesmo modificar profundamente algumas funções, haverá o surgimento de novas funções, que irão requerer novas habilidades, que serão supridas pelos profissionais que tiverem as suas funções atuais afetadas.

De outro modo, existem defensores da tese que o impacto no trabalho será enorme, provocando desemprego, principalmente, para aqueles trabalhadores que não conseguirem se atualizar para os novos requisitos profissionais e mesmo skills que serão demandados.

Independente da tese defendida, há consenso que as atividades com caráter repetitivo ou mesmo passíveis de automação já estão sofrendo e sofrerão mais ainda um impacto. Há também uma certeza de que, embora muitas profissões irão desaparecer, muitas das atuais não totalmente, mas serão profundamente modificadas devido a IA e a robótica.

Estudos recentes trazem dados e conclusões importantes sobre o impacto que IA terá (e já está tendo) no emprego.

Um dos estudos mais completos é “O Relatório sobre o Futuro dos Empregos 2023”, publicado recentemente pelo Fórum Econômico Mundial. O relatório mapeia os empregos e as habilidades do futuro, acompanhando o ritmo das mudanças. O relatório, recém-publicado, sugere que quase um quarto dos empregos (23%) deverá mudar nos próximos cinco anos, com um crescimento de 10,2% e um declínio de 12,3%. De acordo com as estimativas das 803 empresas pesquisadas para o relatório, os empregadores estimam que 69 milhões de novos empregos sejam criados e 83 milhões eliminados entre os 673 milhões de empregos correspondentes ao conjunto de dados, uma redução líquida de 14 milhões de empregos, ou 2% do emprego atual.

Embora a tecnologia continue a representar desafios e oportunidades para os mercados de trabalho, os empregadores esperam que a maioria contribua positivamente para a criação de empregos. A adoção de tecnologia e o aumento do acesso digital também criarão um crescimento líquido de postos de trabalho, mas com maiores compensações de perdas.

Outro estudo recente da OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (Perspectivas de Emprego para 2023) estima que, em média, 27% da força de trabalho dos 38 países-membros do bloco verá suas funções serem automatizadas na próxima revolução da inteligência artificial. As funções que correm mais risco de serem substituídas são aquelas que usam mais de 25 das 100 habilidades que os especialistas em IA consideram que podem ser facilmente automatizadas.

Outra pesquisa, realizada pela OCDE, em 2022, indica que três em cada cinco trabalhadores temem perder o emprego para a IA nos próximos 10 anos. A pesquisa consultou 5,3 mil profissionais em 2 mil empresas das áreas de indústria e finanças, em sete países da OCDE. Entretanto, o estudo foi realizado antes da popularização da IA ​​generativa, que ocorreu em novembro do ano passado com o lançamento do ChatGPT. Se fosse realizada hoje, com certeza, esses números seriam bem maiores.

O conceito de IA surgiu na década de 1950 e durante muitos anos ficou confinado ao ambiente de pesquisa. Apenas recentemente, com as evoluções exponenciais que possibilitaram a redução do custo de processamento, armazenamento, de transferência de dados e de custo dos equipamentos, dentre outros, é que a IA se tornou realidade nas aplicações comerciais e no nosso dia a dia.

Estamos apenas no começo dessa revolução trazida pela IA trará para o mercado de trabalho e a economia global. É provável que seja uma transformação mais impactante do que foi a revolução industrial e o surgimento da Internet.

Para muitas profissões, vale a frase: Talvez você não seja substituído pela tecnologia, mas por pessoas que sabem usá-la melhor que você.

Como você vê a discussão em curso quanto ao uso ético da IA?

Esse é um tema de discussão global que transcende as atividades de pesquisa.

A oferta de soluções baseadas em algoritmos de IA tem tido uma expansão enorme nos últimos anos, fortemente provocado pelas evoluções exponenciais que permitiram, inclusive, a popularização do uso dessas aplicações. Até recentemente, parcela expressiva das aplicações de IA estava confinada ao mundo corporativo, com aplicações específicas.

O que vimos após o lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022, foi algo poucas vezes visto em termos de utilização em escala exponencial, com o surgimento de dezenas de outras aplicações de IA generativa, que permitem que um computador ou mesmo um smartphone criem conteúdo original, como texto, imagens, música ou vídeos, em resposta a solicitações em linguagem textual comum.

Pela rápida expansão que essas aplicações alcançaram em escala mundial, temas que até então estavam adormecidos ou sendo tratados sem prioridade pelos governos e fóruns internacionais, passaram a ser pauta prioritária de discussão, uma vez que a privacidade e o uso ético de dados pessoais tornaram-se um problema real.

O grande volume de dados pessoais hoje armazenados pelas plataformas digitais têm possibilitado a crescente utilização de aplicações de IA, o que torna essencial o desenvolvimento de aplicações de forma responsável, observando as implicações éticas e sociais dessas aplicações, que interagem e impactam diretamente a vida das pessoas.

A grande discussão hoje se dá em como evitar que os algoritmos reproduzam vieses discriminatórios; como garantir o uso e o desenvolvimento ético e inclusiva da IA sem limitar o seu uso e o avanço tecnológico; como atribuir responsabilidades pelas suas ações, quais punições seriam cabíveis, como proteger a privacidade dos cidadãos e garantir a segurança e a transparência em seu uso; como promover o avanço tecnológico de maneira ética e inclusiva como evitar o espalhamento de desinformação e a manipulação de opiniões, dentre outros tópicos importantes.

Em boa parte das nações, não há ainda uma regulação para a IA, tampouco uma legislação adequada para o contexto que vivemos atualmente. No entanto, algumas nações e blocos econômicos já definiram ou estão por formalizar uma regulação focada em IA. Espera-se que o modelo seja seguido por outros países.

Quais são as principais dores do mercado nessa área? Seria a falta de conhecimento e de inovação sobre a IA no Brasil?

Cada vez mais as organizações são orientadas a dados. Nesse cenário, a IA e Big Data Analytics têm um papel fundamental. Estudos de mercado apontam que parcela expressiva das organizações ainda não possui uma cultura orientada a dados estabelecida, até mesmo, por não possuir uma cultura de inovação. Nessas organizações, boa parte das decisões são tomadas por intuição, experiência própria ou de terceiros, e não baseadas em dados e métricas.

Estudo do Gartner revela que a falta de alfabetização em dados é considerada o segundo maior obstáculo interno para o sucesso das organizações orientadas a dados, após a mudança cultural. Por alfabetização de dados entende-se a capacidade de ler, escrever e comunicar dados no contexto, incluindo uma compreensão das fontes e construções de dados, métodos analíticos e técnicas aplicadas, bem como a capacidade de descrever o caso de uso, aplicação e valor resultante.

Outro fator crítico que afeta não só o Brasil, mas todo o mercado internacional, é a carência de mão de obra qualificada. Novas funções relacionadas com a ciência de dados, por exemplo, exigem skill e qualificações que, normalmente, ainda não fazem parte da grade curricular de parcela expressiva das universidades.

Outro ponto importante relaciona-se com os riscos associados à ausência de uma regulação da IA. Esse é um tema que está na pauta de grandes nações, tratado com o rigor de segurança nacional. A China acaba de divulgar uma legislação específica para regular o desenvolvimento e uso de aplicações baseadas em algoritmos de IA. Encontra-se em estágio adiantado no Parlamento Europeu uma proposta de legislação para regular o uso da IA. Os EUA também têm em pauta uma proposta de legislação para regular a IA.

No Brasil, o PL 2338/23 – PL da Inteligência Artificial foi proposto pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), depois de ter sido elaborado por uma comissão de 17 membros, entre juristas e especialistas em direito civil e digital. Segundo o documento, a proposta de lei “estabelece normas gerais de caráter nacional para o desenvolvimento, implementação e uso responsável de sistemas de inteligência artificial (IA) no Brasil”, e tem como objetivo “proteger os direitos fundamentais e garantir a implementação de sistemas seguros e confiáveis, em benefício da pessoa humana, do regime democrático e do desenvolvimento científico e tecnológico”.

As autoridades de proteção de dados e privacidade do G7 (Alemanha, Canadá, Estados Unidos, França, Itália, Japão e Reino Unido) emitiram recentemente um comunicado apontando preocupações com o desenvolvimento de aplicações com base em Inteligência Artificial (IA) generativa, como o ChatGPT. Segundo o grupo, sem regulação, a tecnologia pode trazer riscos à privacidade e gerar danos a outros direitos humanos.

Como a indústria pode se beneficiar da IA para se tornar competitiva?

São inúmeros os benefícios que a IA pode trazer para o segmento industrial. Vamos citar alguns:

A indústria está se tornando cada vez mais digitalizada, com a coleta, processamento e análise de dados cada vez maior. As aplicações baseadas em algoritmos de IA permitem a análise de grandes volumes de dados operacionais em tempo real, permitindo a identificação de padrões e tendências, possibilitando um aumento da produtividade nas linhas de produção e processos de fabricação mais eficientes e uma tomada de decisão mais rápida e precisa.

Na indústria, a IA pode ser aplicada em diversos processos, desde o controle de qualidade, a previsão de demanda, a otimização de estoques, logística e a manutenção preditiva.

O sensoriamento das plantas fabris tem permitido a coleta e análise de dados em tempo real. A análise desses dados por aplicações baseadas em algoritmos de IA permite a implementação, por exemplo, da manutenção preditiva, o que permite a identificação precoce de falhas em equipamentos e a realização de manutenções preventivas, evitando paradas não programada na produção, possibilitando a redução de custos, além de maximizar a disponibilidade dos ativos e prolongar sua vida útil.

As aplicações de visão computacional permitem o reconhecimento de padrões, possibilitando a inspeção de produtos em tempo real no ambiente de produção, com elevada precisão, permitindo a detecção de defeitos, a redução de retrabalho e a diminuição de desperdícios, gerando maior eficiência no controle de qualidade. A IA aplicada a sistemas de visão pode trabalhar, por exemplo, na localização de peças, na checagem da posição dos produtos, na classificação e no reconhecimento de critérios de qualidade.

A robotização tem permitido uma maior produtividade dos processos produtivos, pois, o uso de robôs industriais autônomos e colaborativos associados a aplicações de IA permite a realização de tarefas complexas de forma segura, executando tarefas repetitivas, perigosas ou que exigem alta precisão. Adicionalmente, os robôs associados com aplicações IA são capazes de realizar diversas tarefas arriscadas ou perigosas para o ser humano, como manusear matéria-prima tóxica, inspecionar 100% dos produtos de uma linha de produção, analisar componentes microscópicos, e trabalhar por longos períodos sem pausa.

O gêmeo digital permite a simulação virtual de uma variedade de cenários, permitindo a tomada de decisões inteligentes em áreas como otimização da produção. O conceito de gêmeos digitais não é recente, mas tem sido fortemente aprimorado com a utilização de aplicações de IA para a estruturação, o planejamento e o projeto de produtos e equipamentos fabris, além das próprias operações de produção, permitindo a fabricação produtos personalizados de alta qualidade, com mais rapidez.

A logística também pode ser fortemente beneficiada pelo uso de aplicações de IA, uma vez que os algoritmos de IA podem otimizar o planejamento da produção, com a análise da demanda, estoques, e previsões de vendas, por exemplo, para otimizar o planejamento de produção, gestão de estoques, agendamento de entregas, e gestão do transporte, viabilizando uma maior eficiência da cadeia de suprimentos, reduzindo custos e tempo de entrega, além de melhorar a satisfação do cliente.

A otimização da cadeia de suprimentos pode ser fortemente impactada, pois as aplicações de IA permitem a otimização de todo o ciclo, desde o planejamento até a entrega do produto ao cliente, a partir de análise de dados que permite uma previsão de demanda mais acurada, otimizando o processo de produção e gestão de estoque, evitando desperdícios.

Pode citar algumas aplicações da IA em setores estruturantes?

O rol de aplicações é enorme e crescente, com a ampliação do leque de aplicações baseadas em IA que tem surgido. Vamos citar algumas:

A manutenção preditiva na automação industrial, a partir do monitoramento dos processos por meio da combinação de sensores inteligentes com uma rede interconectada de máquinas, permite a identificação de eventuais paradas na produção, bem como potenciais acidentes, com a análise de grande volume de dados coletados em tempo real.

O setor de saúde têm cada vez mais utilizado aplicações de IA para fazer um diagnóstico melhor e mais rápido do que os humanos, permitindo, inclusive, a intervenção do profissional de saúde antes mesmo da hospitalização. Aplicações de IA são usadas para a projetos de equipamentos precisos que são capazes de detectar pequenas doenças dentro do corpo humano. Além disso, a Inteligência Artificial usa o histórico médico e a situação atual de um determinado ser humano para prever doenças futuras.

O setor financeiro tem sido um que mais tem se beneficiado do uso algoritmos e aprendizado de máquina em processos financeiros, implementando automação, chatbot, inteligência adaptativa, prevenção de fraudes e riscos em empréstimos, fornecimento de consultoria financeira corporativa, detecção de quaisquer atividades transacionais indesejadas dos clientes-alvo, dentre outros.

O setor automobilístico está passando por uma mudança profunda nos últimos anos, fortemente baseado na adoção de veículos inteligentes e conectados, com a utilização intensa de sensores e coleta de dados em tempo real, que viabiliza a utilização de IA para fornecer, por exemplo, um assistente virtual ao usuário para melhor desempenho, inclusive, para o desenvolvimento de veículos autônomos.

O agro está se tornando cada vez mais digital e tem utilizado cada vez mais aplicações de IA associadas com a robótica agrícola, monitoramento de culturas e análise preditiva. Aplicações de IA são utilizadas para detectar vários parâmetros, como quantidade de água e umidade, quantidade de nutrientes deficientes etc. no solo e até mesmo para detectar onde as ervas daninhas estão crescendo, onde o solo é infértil etc.

Quais os setores que mais demanda por soluções nessa área?

É difícil mencionar um setor que não demande aplicações de IA nos dias de hoje. As plataformas digitais foram uma das pioneiras na popularização do uso de aplicações baseadas em IA.

É claro que setores estratégicos, como automobilístico, aéreo, saúde, transporte de carga, financeiro, agrícola, varejo, comércio eletrônico, eletrônico, mídia digital, dentre outros, continuam a cada vez mais ter a IA como elemento central de seus modelos de negócios.

Hoje, depois da popularização das aplicações de IA generativa, fica difícil mencionar um setor que não possa se beneficiar, com baixo investimento.

Aliás, essa foi uma das grandes mudanças que estamos vivenciando recentemente: a popularização, a baixo custo (ou mesmo, sem custo), do uso de aplicações de IA. Não só os usuários finais, mas as próprias corporações, nos mais diversos setores, têm se beneficiado desse novo momento.

O que vimos nos últimos meses foi uma discussão acalorada sobre o impacto que a IA tem tido em alguns segmentos, notadamente as aplicações de IA generativa. Temos visto movimentos de diretores de cinema, músicos, artistas, advogados, só para citar alguns, questionando o impacto dessas aplicações em seus empregos.

O conceito de autoria, propriedade e direitos autorais passaram a ser o centro da discussão. O setor educacional foi fortemente impactado, pois da noite para o dia passou a conviver com o uso intenso pelos alunos de ferramentas de IA generativa para a produção de trabalhos de alta qualidade. Muitas instituições chegaram até a proibir o uso dessas ferramentas, como uma alternativa paliativa.

De concreto, a IA ainda está em sua infância. Seu impacto é inquestionável, mas ainda temos muitos desafios pela frente, até mesmo para tornar o seu uso justo, ético e responsável.

Em tempo, esse texto não foi produzido com a utilização do ChatGPT.

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*Especialista em Inovação Industrial da Embrapii, comenta como o tema deve ser tratado no futuro

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