Por Clara Savelli*, Daniela de Sa Jacobina Pires** e Heloísa Catani Mariani Pavoni Matias**

Há tempos, a redução da desigualdade social no Brasil é um tema central de discussões, considerando os avanços tecnológicos das últimas décadas, em especial no âmbito do trabalho. Realmente, desde a Primeira Revolução Industrial, a tecnologia tem sido vista tanto como um caminho para novas oportunidades de emprego quanto como um fator que contribui para uma acentuada desigualdade social, se não houver um cuidado de inclusão do ponto de vista governamental. É amplamente aceito que as tecnologias digitais podem ser utilizadas de forma positiva, buscando novas formas de disseminar conhecimento e de auxiliar nos estudos e no ambiente profissional, mas existe um receio coletivo, muitas vezes em forma de mito, de que a tecnologia roubará empregos e será danosa para a população.

Na verdade, o que vemos cada vez mais é que a tecnologia proporciona caminhos para oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento, oferecendo instrumentos cruciais para a capacitação de profissionais. Por meio de programas de formação, habilidades valorizadas no mercado de trabalho tecnológico podem ser adquiridas, o que não só aumenta a competitividade dos candidatos, mas também contribui significativamente para a elevação de seu padrão de vida. Dominando a tecnologia, os trabalhadores são capazes de expandir suas possibilidades de emprego, elevar sua renda e, assim, atingir um nível de vida superior, quebrando ciclos de desigualdade e fomentando o progresso social e econômico.

Conforme uma pesquisa realizada com jovens aprendizes do Centro de Integração Empresa Escola (CIEE)[1], os efeitos da tecnologia na qualidade de vida desses indivíduos são evidentes, especialmente considerando que suas famílias tinham rendas mensais em torno de um salário mínimo antes de ingressarem no mercado tecnológico. Muitos se tornaram os principais provedores de suas famílias, mudando não só a sua visão de mundo, mas também alcançando um crescimento profissional anteriormente inimaginável. A Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES), através da Plataforma RH Tech[2] divulga diversos programas de capacitação que oferecem treinamento profissional para pessoas interessadas em tecnologia.Os dados desses programas dos parceiros confirmam os impactos positivos da educação na inserção de pessoas em situação de vulnerabilidade social no mercado de trabalho, mudando, assim, a vida delas e de suas famílias. Um dos parceiros, a {Reprograma}, que trabalha com capacitação em programação para mulheres (cis e trans), tem uma taxa de 63% de formandas empregadas na área de TI em até 6 meses após a conclusão dos cursos, por exemplo[3].

Da mesma forma, as plataformas digitais se mostraram como uma nova fonte de renda para muitos brasileiros, o que ficou claro durante a pandemia, quando empregos convencionais perderam força e a dependência de tecnologia se intensificou. O Brasil é um dos países com maior número de usuários de internet no mundo[4], e não é surpreendente que as plataformas de vendas estejam crescendo cada vez mais, impactando positivamente a qualidade de vida da população. Essas plataformas podem servir tanto como fonte principal de renda quanto como um complemento. É verdade, no entanto, que é necessário olharmos este tipo de relação de trabalho também do ponto de vista governamental, tentando entender como é possível diminuir a precariedade sem que se perca a competitividade, o empreendedorismo e o interesse das empresas de investir neste tipo de modelo.

Todavia, precisamos talvez dar um passo atrás e entender que o desafio da conectividade é crucial no uso de ferramentas digitais para trabalho e estudo, já que, no Brasil, um país de dimensões continentais, há grande disparidade em termos de acesso, afetando como as pessoas entendem e utilizam tecnologias. Pesquisas recentes[5] apontam que cerca de 84% dos lares brasileiros estão conectados à internet. Todavia, quando analisamos o percentual que não está conectado à rede, vemos que se tratam de pessoas que comumente vivem em situações de vulnerabilidade social. 17 milhões dessas pessoas são pretas ou pardas, assim como 17 milhões pertencem às classes D-E. Além disso, 24 milhões estudaram apenas até o ensino fundamental. Importante destacar que 16 milhões têm 60 anos ou mais, superando a soma de não-usuários das demais faixas etárias. O que vemos com estes dados é que uma parcela da população que se beneficiaria muito da conectividade e do letramento digital ainda está excluída, correndo riscos de ser retirada do mercado de trabalho em pouco tempo, com os avanços tecnológicos mesmo em áreas anteriormente consideradas de trabalho manual (a agricultura familiar[6], por exemplo).

A tecnologia desempenha um papel vital na redução das desigualdades, trazendo soluções inovadoras em vários setores. Na educação, plataformas online democratizam o acesso ao conhecimento, permitindo a indivíduos de diferentes contextos aprenderem e se qualificarem. Grande parte dos cursos que passaram pela curadoria da ABES via RH Tech são digitais, possibilitando a participação de diversas pessoas em todos os lugares do Brasil. Vale mencionar que, além disso, alguns capacitadores que trabalham com inclusão e alfabetização digital emprestam um computador para que os alunos possam participar das aulas e fazer as tarefas. É o caso da RECODE, por exemplo, uma organização não governamental (ONG) que é beneficiária das doações da Mobilização para Redução da Desigualdade, programa da ABES que trabalha com o descarte correto de equipamentos eletrônicos, reinvestindo os valores arrecadados com a reciclagem destes equipamentos ou doando os próprios equipamentos recondicionados para ONGs que trabalhem com capacitação digital[7].

Na saúde, a telemedicina é uma ferramenta essencial para levar atendimento de qualidade a áreas remotas. A prática ganhou força no período pandêmico, mas segue sendo relevante no atendimento médico brasileiro. Pesquisas apontam que 33% dos médicos e 26% dos enfermeiros em 2022 atenderam pacientes online[8]. Este tipo de atendimento é extremamente benéfico pois facilita o acesso de populações em locais com pouco acesso ao atendimento tradicional, desafoga o atendimento presencial para que possa se focar apenas em casos que realmente precisam de um atendimento corpo-a-corpo e diminui os custos hospitalares[9].

As FinTechs revolucionam o setor financeiro, oferecendo serviços bancários a quem antes não tinha acesso. Além disso, elas ajudam na educação financeira e na capacitação dos usuários para que sejam donos de seu próprio dinheiro e mais conscientes do seu uso, evitando o endividamento tão comum no país[10].

A inclusão digital, com o fornecimento de dispositivos e treinamento em habilidades digitais, permite que comunidades marginalizadas participem da economia digital. Podemos seguir dando diversos outros exemplos: no empreendedorismo, a tecnologia promove novas oportunidades de negócios e criação de empregos, especialmente através de startups e comércio eletrônico. Na agricultura, tecnologias como IoT e drones aumentam a produtividade, beneficiando principalmente comunidades rurais. Governos ao redor do mundo adotam o e-governance para tornar serviços mais acessíveis e transparentes. Por fim, a tecnologia de energia renovável é vital na redução da desigualdade energética, levando fontes de energia sustentável a regiões antes desprovidas. Essas iniciativas tecnológicas são fundamentais para combater as desigualdades e promover um desenvolvimento mais inclusivo e equitativo.

Existem diversas abordagens para tornar o Brasil um país mais digital e menos desigual, mas todas elas passam pela alfabetização em dados e pela capacitação profissional no setor tecnológico. Todos precisam estar comprometidos com esta meta: governo, academia e empresas. Cada parte deve contribuir com sua parcela, a fim de ser possível usufruir de todos os benefícios que os desenvolvimentos tecnológicos têm a oferecer e mitigar os riscos, especialmente o de piorar a exclusão, que eles também podem oferecer.

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*Coordenadora de projetos na Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES) e cuida dos assuntos de ESG (em inglês: environment, social and government; traduzindo: ambiental, social e governamental). Formada em Direito e Relações Internacionais, também é mestre em Ética e Filosofia Política e doutoranda em Estética. Também é autora publicada pela editora Intrínseca, onde escreve livros jovens.

**Mestre em Propriedade Intelectual e Transferência de Tecnologia para Inovação pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atualmente é coordenadora de projetos no Think Tank – Centro de Inteligência de Inovação, Políticas Públicas e Inovação da Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES).

***Historiadora graduada pela Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP). Atualmente no último ano do curso de Direito nas Faculdades Metropolitanas Unidas, atua como assistente Jurídica na Associação Brasileira das Empresas de Software (ABES).

[1] MARQUES, Jamile Sabatini; ITIKAWA, Luciana Fukimoto. Diagnóstico de todos os Jovens da RMSP. Análise dos Jovens Aprendizes do CIEE. Universidade de São Paulo: Instituto de Estudos Avançados, 2020.[não publicada]. Pesquisa apresentada durante reunião do Comitê Futuro do Trabalho da ABES realizada em 17 de agosto de 2022. Para mais informações sobre os dados levantados, entrar em contato com a pesquisadora em contato@thinktankabes.org.br.

[2] Conheça a plataforma em https://abes.com.br/rhtech/. Acesso em 20 nov. 2023.

[3] REPROGRAMA. Nosso Impacto. Disponível em: https://reprograma.com.br/nosso-impacto/. Acesso em: 19 nov. 2023.

[4] DIGITALKS. Brasil é o 5º país com mais usuários de internet no mundo. Disponível em: https://digitalks.com.br/noticias/brasil-e-o-5o-pais-com-mais-usuarios-de-internet-no-mundo/. Acesso em: 19 nov. 2023.

[5] Camargo, Bianca. Cerca de 84% dos lares brasileiros têm acesso à internet, diz pesquisa. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/cerca-de-84-dos-lares-brasileiros-tem-acesso-a-internet-diz-pesquisa/>. Acesso em 20 nov. 2023.

[6] EMBRAPA. Tecnologias para a agricultura familiar. Disponível em: <https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/988186/tecnologias-para-a-agricultura-familiar>. Acesso em: 20 nov. 2023.

[7] SOPRANA, Paula. Projeto recicla lixo eletrônico e recria computadores para inclusão digital. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 jul. 2021. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/07/projeto-recicla-lixo-eletronico-e-recria-computadores-para-inclusao-digital.shtml>. Acesso em: 20 nov. 2023.

[8] AGÊNCIA BRASIL. Pesquisa aponta que 33% dos médicos do país atenderam via teleconsulta. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/saude/noticia/2022-12/pesquisa-aponta-que-33-dos-medicos-do-pais-atenderam-teleconsulta>. Acesso em: 20 nov. 2023.

[9] CNN BRASIL. O que é telemedicina. CNN Brasil, 23 mai. 2023. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/saude/o-que-e-telemedicina/>. Acesso em: 20 nov. 2023.

[10] EXAME. Fintechs podem promover impacto social e sustentabilidade na economia. Disponível em: https://exame.com/bussola/fintechs-podem-promover-impacto-social-e-sustentabilidade-na-economia/. Acesso em: 21 nov. 2023.

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