Por André Portella* e Camila Guerreiro Britto**

O Cashback ou Moneyback nasceu como uma estratégia de precificação que produtos comercializados por meio da internet. Ao invés da concessão de descontos diretos sobre a venda, o consumidor é atraído pela ideia de obter de volta uma parcela da compra, a ser resgatada em dinheiro ou abatida em compras futuras. Estudos indicam que se trata de uma prática comercialmente exitosa, com potencial para aumentar a probabilidade de que o consumidor realize novas compras, bem como para aumentar o valor dessa, daí advindo a o conceito de que “Cashback is Cashforward[1].

No âmbito da reforma tributária, foi pensada pelo CCIF (Centro de Cidadania Fiscal) [2], onde se cunhou o texto original da PEC 45/2019, como uma das maneiras de reduzir o impacto da reforma – cuja potencialidade de aumento da carga é enorme, inclusive sobre o preço dos alimentos –, sobre as camadas mais pobres da população brasileira.

Apesar das inúmeras modificações na redação original da PEC, a ideia do cashback permaneceu no texto aprovado pela Câmara dos Deputados em julho de 2023, permanecendo também nas discussões sobre o Projeto em curso no Senado Federal, tendo em vista a notícia que nos dá o parecer divulgado pelo relator Senador Eduardo Braga (MDB-AM), no dia 25/10/2023 [3].

Estudo desenvolvido pelo Banco Mundial acerca dos impactos distributivos da reforma da tributação indireta em discussão no Brasil, divulgado em 18/10/2023 [4], conclui que entre as duas alternativas técnicas para redução do impacto econômico – de um lado as isenções ou reduções a itens específicos, e, de outro, a manutenção de uma alíquota única de imposto aliada à devolução do total pago pelas pessoas inscritas no CAD ÚNICO (cashback) –, a segunda opção é a que melhor produziria resultados no sentido de aproximar o sistema da neutralidade. Ou seja, não seria atingido um sistema progressivo (assim entendido aquele que afeta mais as pessoas com maior capacidade econômica), mas consistiria num avanço, na medida em que conferiria ao sistema de tributação sobre o consumo um caráter menos regressivo.

Ainda de acordo com o estudo, mesmo que a ideia de isentar ou reduzir a alíquota para uma grande quantidade de itens seja mais simpática ao público em geral, o impacto dessa política para as famílias mais pobres é menor do que para as famílias mais abastadas. Isso porque, enquanto as primeiras gastam 20,4% de sua renda no consumo de bens da Cesta Básica, as segundas gastam apenas 6,7% de sua renda (dados do próprio estudo). Assim, os benefícios fiscais concedidos de maneira geral – ou seja, de forma não-específica para as pessoas que se encontram nas camadas mais vulneráveis economicamente – tendem a ser muito custosos do ponto de vista fiscal (ou seja, equivalem a uma renúncia fiscal importante), sem atingirem o objetivo de redistribuição de renda.

O cashback tributário constitui-se, portanto, em uma ideia inovadora que tem a potencialidade de pôr em prática, de uma maneira relativamente simples, a distribuição de renda para os mais pobres sem nenhum custo fiscal adicional para o Estado. A depender de como as regras sejam definidas, é possível ainda aproximar o sistema de tributação indireta da condição de ideal de neutralidade.

Seja como for, abre-se um horizonte importante para o desenvolvimento de tecnologias que possibilitem a operacionalização do sistema. No Brasil, parte da estrutura necessária para pôr em prática o cashback já existe, como afirma o próprio CCIF, em livro que trata do processo de elaboração do texto original da PEC 45 [5]. Como se sabe, em nosso país já está consolidado o sistema de notas fiscais eletrônicas, inclusive nas vendas a consumidor final, o que permite a identificação de cada pessoa e de seu perfil de renda e consumo. Por outro lado, o cadastro único tem se tornado cada vez mais apto a retratar o quadro das famílias mais carentes. De acordo com informações prestadas pela Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único – SAGICAD, entre agosto de 2012 e agosto de 2023, mais de 18 milhões de pessoas se inscreveram no CAD ÚNICO, sendo que o incremento mais expressivo ocorreu a partir de fevereiro de 2021, quando o número saltou de cerca de 29 milhões de pessoas para os atuais 43 milhões (ou seja, dos 18 milhões de novos inscritos, 14 milhões ingressaram na fase mais crítica da pandemia de COVID19) [6].

Mesmo assim, até que possamos implementar a sistemática, existe um longo caminho a percorrer. Os detalhes sobre a forma de operacionalizar o cashback não foram esgotados, permanecendo ainda no campo das (boas) ideias. Nem mesmo o CCIF não provê, em seus estudos, soluções para todas as questões que envolvem a estruturação do sistema de devoluções. Ademais, outras complexidades foram criadas ao longo do tempo, com as sucessivas alterações no texto da PEC.

O texto original não previa qualquer tipo de incentivo, como reduções de alíquotas ou de bases de cálculo, que acabaram sendo introduzidos após aprovação na Câmara dos Deputados. A inserção desses regimes de exceção à regra, destinados a itens e não a pessoas, introduzem fatores de regressividade no sistema, que tendem a reduzir os impactos redistributivos proporcionados pelo cashback, de acordo com o multicitado estudo do Banco Mundial.

Fundamental é também a definição do público-alvo do cashback. O texto da reforma prevê apenas que a lei disporá sobre “as hipóteses de devolução do imposto a pessoas físicas, inclusive os limites e os beneficiários, com o objetivo de reduzir as desigualdades de renda” (art. 156-A, §5º, inciso VIII e Art. 195, §17). Neste tocante, mesmo que se convencione a utilização do CAD ÚNICO (o que ainda não está definido), as inúmeras denúncias de fraudes ao sistema do auxílio emergencial durante a pandemia da COVID19 recomendariam uma ampla revisão deste cadastro, de modo a assegurar que nele permanecessem apenas as pessoas integrantes do grupo de baixa renda.

Do mesmo modo, é ponto central a definição do quantum a ser devolvido. Da leitura dos documentos produzidos pelo CCIF, pode-se compreender que o seu objetivo não é devolver 100% do montante do imposto incidente sobre o consumo das famílias de baixa renda. A proposta do referido instituto é a de que exista um limite de compras sujeitas à devolução integral, sem restrição a itens específicos (ou seja, não se restringiria aos itens da Cesta Básica, por exemplo), deixando aberto o espaço para debates acerca da construção destes racionais, que, mais uma vez, serão objeto de lei posterior. É importante que a sociedade se engaje nessa discussão, de maneira a assegurar que os critérios a serem definidos sejam suficientes para promover o objetivo de redução das desigualdades de renda no Brasil.

Por fim, mais alguns aspectos referentes à efetividade da devolução. O primeiro diz respeito à necessidade de que todas as pessoas físicas que pertençam aos grupos de beneficiários estejam com seus cadastros no CPF devidamente regularizados. Informações divulgadas pela Agência Brasil tratam da existência de cerca de 14 milhões de pessoas com CPF irregular em 2020, inaptas, a priori, ao recebimento do auxílio emergencial [7].

O segundo refere-se à garantia que o Estado deve fornecer ao cidadão de que as devoluções serão tempestivas, procedendo-se, a cada mês, ao crédito do montante relativo ao consumo do mês anterior. Neste sentido, há expectativa de que seja adotado, ao menos para o IBS, o mecanismo split payment para operacionalizar os pagamentos do imposto. Esta sistemática permite que, sob a administração de uma instituição financeira, o montante de tributos incidente em cada operação seja diretamente destinado a uma conta especial, sob custódia da autoridade fiscal [8]. Espera-se, desta forma, que esta mesma instituição possa atribuir automaticamente, por meio da parametrização das regras (pré-definidas em lei), às contas vinculadas aos beneficiários o montante devido a título de devolução, sem atrasos. Ainda no mesmo caminho, cabe indagar acerca dos impactos, no sistema de devoluções, das eventuais inadimplências dos tributos, acaso o mecanismo acima previsto seja implantado de maneira não-obrigatória, como acontece em outros países.

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*Pesquisador do Think Tank da ABES, doutor em Direito Financeiro e Tributário, advogado e professor da UFBA e UNIFACS
**Consultora e advogada tributarista, mestranda em Direito, Governança e Políticas Públicas da UNIFACS, Bahia.

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[1] VANA, Prasad; LAMBRECHT, Anja; BERTINI, Marco. Cashback is cash forward: delaying a discount to entice future spending. Journal of Marketing Research, v. 55, n. 6, p. 852-868, 2018.

[2]O CCIF se autointitula como um “think tank independente”, que tem como objetivo “desenvolver estudos e propostas que ajudem a simplificar e aprimorar o sistema tributário brasileiro e o modelo de gestão fiscal do país”. É financiado por grandes empresas, como Itaú e Braskem. Mais informações estão disponíveis neste link. Consulta em 26/10/2023.

[3] BRASIL. Senado Federal. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Parecer sobre o Projeto Emenda Constitucional nº 45/2019. Parecer S/N, Relator: Senador Eduardo Braga (MDB/AM). Brasília, DF, 25 de outubro de 2023.

[4] BANCO MUNDIAL. Impactos distributivos da reforma tributária no Brasil: cenários relativos à isenção da Cesta Básica. Washington, DC: Banco Mundial, 2023. Disponível neste link. Acesso em: 26 out. 2023.

[5] Disponível para download neste link.

[6] Informações disponíveis neste link. Consulta em 26/10/2023.

[7] Notícia disponível neste link. Acesso em 26/10/2023.

[8] KOWAL, Anna. Split payment mechanism in the economy of small and medium-sized enterprises. Zeszyty Naukowe Małopolskiej Wyższej Szkoły Ekonomicznej w Tarnowie, n. 4 (44), p. 39-51, 2019. Disponível neste link. Consulta em 26/10/2023

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