Por Marcelo B. Nery* e Bruno Paes Manso**

Marcelo Batista Nery e Bruno Paes Manso

 

No Brasil, o combate ao crime organizado tem sido impulsionado por uma variedade de medidas, incluindo ações legais, financeiras, orçamentárias, operacionais e, atualmente, destacam-se as medidas tecnológicas. Muitas vezes, os avanços não reduzem o problema e acabam reforçando os efeitos colaterais danosos de políticas públicas equivocadas aplicadas ao longo dos anos. A sensação é de que estamos sempre correndo atrás de (cobrir) o prejuízo, o que nos leva a segmentar nossa abordagem como uma técnica de corrida em três fases:

Fase 1: Largada

Uma facção criminosa não surge no vácuo. Em São Paulo, emergiu com a proposta de mediar e atuar em benefício do interesse dos integrantes de uma ampla rede criminal, além de organizar a dinâmica de um mercado ilegal bilionário, puxado pela demanda incessante de drogas nas cidades de diversos países do mundo. Foi o caso do Primeiro Comando da Capital (PCC), fundado em 31 de agosto de 1993, exatos 30 anos atrás, na Casa de Custódia de Taubaté, conhecida como “Piranhão”, na época considerada a prisão mais segura do Estado. Inicialmente, o PCC era denominado “Partido do Crime” e afirmava tanto lutar contra a opressão dentro do sistema prisional paulista como buscar vingança pela execução dos presos no trágico “massacre do Carandiru”, ocorrido cerca de um ano antes, quando a Polícia Militar matou 111 detentos no pavilhão 9 da extinta Casa de Detenção de São Paulo.

É importante lembrar que a primeira lei brasileira efetiva de combate ao crime organizado foi promulgada dois anos depois, em 1995, juntamente com a legislação de combate à lavagem de dinheiro. A partir desse marco, houve um aumento significativo nos recursos financeiros direcionados à segurança pública. Em São Paulo, por exemplo, o governo estadual fez investimentos consideráveis, aumentando o salário dos policiais militares e os gastos do Estado em segurança pública. No entanto, esses recursos foram direcionados principalmente para remuneração do efetivo policial, aquisição de equipamentos e construção de penitenciárias, com poucos investimentos em métodos de observação, técnicas de registro, procedimentos de investigação e pesquisa. Grosso modo, somente cinco anos depois é que houve uma efetiva alocação de recursos progressivos em tecnologia da informação (TI).

A partir dos anos 2000, o PCC passou a atuar como uma espécie de agência reguladora do mercado criminal paulista, definindo regras, punindo desviantes e estabelecendo um novo tipo de governança que aumentou os lucros e reduziu os riscos de seus participantes. É interessante observar que naquele momento (reativamente e não preventivamente, como seria crucial), o governo federal lançou o primeiro Plano Nacional de Segurança Pública (PNSP), estabelecendo oficialmente ações e compromissos para combater o narcotráfico e o crime organizado. Esse plano foi implementado em resposta à crescente preocupação com a criminalidade e suas consequências para a sociedade brasileira. Ele propõe uma série de medidas e compromissos para reduzir a violência, incluindo investimentos em capacitação profissional e modernização das forças policiais.

No estado de São Paulo, a maior economia do país, destacam-se importantes exemplos do impacto da TI na segurança pública: a informatização da Secretaria de Segurança Pública (SSP), que gradualmente interligou em rede de distritos policiais e companhias da Polícia Militar; o Sistema de Informações Criminais (Infocrim), que permitiu a identificação e análise dos locais com maior incidência de crimes; o Disque Denúncia (181), que possibilitou que qualquer pessoa fornecesse informações à polícia sobre crimes e formas de violência, com garantia de anonimato; e os Procedimentos Operacionais Padrão (POP), que foram implementados com o objetivo de padronizar as atividades operacionais.

Fase 2: Desenvolvimento

Nas últimas duas décadas, testemunhamos avanços significativos no campo da segurança pública, influenciados pelas inovações tecnológicas. Muitas dessas melhorias, contudo, se concentraram no aumento da produtividade do trabalho da Polícia Militar, voltado ao patrulhamento ostensivo. O resultado foi o aumento das prisões em flagrante, que contribuíram para o crescimento do total de presos, que passaram de pouco mais de 30 mil em 1992 (algumas datas são importantes de serem lembradas) para 230 mil presos depois de 30 anos. O aumento do aprisionamento não diminuiu os recursos e os lucros no mercado criminal, nem o poder financeiro de seus participantes.

Se esses investimentos tecnológicos possibilitam ganhos para a segurança pública, as novas tecnologias também abriram oportunidades para atividades ilícitas e ganho de dinheiro dentro de um sistema penitenciário superlotado e em expansão. A proliferação de celulares nas prisões, por exemplo, pôde transformar celas em verdadeiros escritórios, permitindo o estabelecimento de redes de parceiros e a facilitação de atividades criminosas.

É evidente que há uma disputa pelo uso da TI entre o Estado e o crime organizado. No entanto, vale ressaltar que essa não é a única questão a ser considerada quando se trata da interseção entre tecnologia e segurança, no contexto das políticas públicas. Devemos levar em conta dois pontos fundamentais: em primeiro lugar, a existência de duas forças policiais distintas; e, em segundo lugar, a ênfase dada ao policiamento ostensivo, ao confronto e ao encarceramento como principais (eventualmente as únicas) estratégias. No que diz respeito ao primeiro ponto, é evidente que a investigação de crimes relacionados ao crime organizado, que é responsabilidade da Polícia Civil, não avançou como era de se esperar (principalmente em relação aos desafios da investigação financeira) nem assumiram o protagonismo necessário na política de segurança pública. Já a dependência excessiva do patrulhamento ostensivo e da prisão em flagrante, que acabou superlotando as prisões sem fragilizar o potencial econômico do mercado do crime, acabou permitindo o fortalecimento e o avanço das facções em São Paulo e depois no resto do Brasil.

Fase 3: Chegada

A aplicação da TI na segurança pública requer uma abordagem abrangente, que vá além do menor custo de implantação e de manutenção e dos aspectos mensuráveis do crime. Além de lidar com a coleta, processamento e análise de dados criminais, é crucial compreender a cronologia dos eventos relacionados ao crime organizado em diferentes perspectivas, bem como a vulnerabilidade ao uso indevido da tecnologia por parte dos criminosos.

Aumentar a percepção de segurança da sociedade, reduzir os crimes praticados com uso de violência, aplicar medidas alternativas para punir crimes de menor gravidade, dialogar com outras medidas preventivas que vão além das polícias, fazem parte do debate. A compreensão da estrutura da SSP (e as suas relações com a segurança privada), do contexto social e dos impactos desses constructos na intenção política e econômica vigente também são fundamentais. Diante desses desafios, é essencial promover pesquisas interdisciplinares, sempre considerando que os impactos da TI na segurança (em rápida evolução) ainda são pouco conhecidos e explicados, tanto empiricamente quanto teoricamente, e sempre considerando que há implicações legais e éticas.

(Artigo originalmente publicado no Portal IT Forum em 29 de agosto de 2023)

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* Marcelo Batista Nery é pesquisador no Think Tank da ABES, coordenador de Transferência de Tecnologia e Head do Centro Colaborador da OPAS/OMS (BRA-61) do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.

** Bruno Paes Manso é Jornalista, escritor e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (USP). Vencedor do prêmio Jabuti com a obra “República das Milícias – dos Esquadrões da Morte à Era Bolsonaro”, em 2021.

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