Por Marcos Vinícius Delgado*
No ano passado, completaram-se 10 anos desde a implementação de um dos principais marcos institucionais da transparência no Brasil. Apesar de o artigo 5º da Constituição de 1988 assegurar a transparência como direito fundamental, foi a Lei de Acesso à Informação, conhecida como LAI, que significou expressiva transformação no modo como o Estado passou a lidar com as informações públicas, pois motivou a regulamentação e a adaptação da estrutura governamental para o uso de tecnologias de informação e comunicação (TICs) para garantir a promoção da transparência. Uma das grandes contribuições da LAI foi a obrigatoriedade da disponibilização do acesso à informação de forma ativa, por meio de portais eletrônicos como também a criação do Serviço de Informação ao Cidadão (SIC), tanto em meio físico, como de forma digital.
Embora o Brasil tenha avançado na institucionalidade e na implementação de políticas voltadas à digitalização do acesso à informação, isso não significou diretamente a qualidade da transparência, tal como demonstram as publicações de diversos estudos na área[1] que, em grande parte, apontaram os interesses políticos e a cultura do sigilo como os principais vilões a favor da opacidade nos dados sobre as políticas públicas.
No governo anterior, as medidas de desmantelamento das políticas de transparência, evidenciadas pelos inúmeros ataques aos direitos de acesso à informação – a exemplo do Decreto do Sigilo (9690/2019), do apagão de dados de mortes por covid-19, dos altos índices de rejeição do acesso à informação (aumento de 663,08%) e do Orçamento Secreto – escancararam a existência de um projeto político autoritário em que o poder invisível do Estado, ora traduzido pelo sigilo, tal como em tempos de ditadura militar, é a regra, e a transparência e o acesso à informação são a exceção.
Se no Governo Federal, em que a estrutura tecnológica de acesso a dados e informações é mais sofisticada, o sigilo é presente, este cenário fica pior em se tratando de outros poderes e esferas governamentais, que, dispõem pouco ou de modo secundário de investimentos e interesses em tornar as informações governamentais objetivas, transparentes, claras e em linguagem de fácil compreensão. Dados de estudos recentes[2] sobre o desempenho da transparência ativa de portais de órgãos do Poder Judiciário, Legislativo, de estados e municípios são capazes de afirmar que o aumento da visibilidade e publicidade das informações não tem implicado, necessariamente, mais transparência. Um dos pontos elencados nestas pesquisas diz respeito ao grau do que é chamado de inferability que diz respeito à capacidade de inferência que se pode ter do usuário a partir da informação disponibilizada nos portais eletrônicos. As pesquisas demonstram, portanto, que, os órgãos, mesmo quando disponibilizam as informações em tempo real, na íntegra e de modo atualizado pecam em sua qualidade e precisão, obscurecendo análises importantes que poderiam ser interpretadas por gestores públicos, jornalistas, pesquisadores e pela população geral acerca do que é publicado.
Neste sentido, trago aqui, portanto, especial atenção aos municípios em que a falta de orçamento em infraestrutura tecnológica, associada à cultura do sigilo ainda presente em territórios com menor demografia, realçam os principais desafios existentes no fortalecimento da transparência no Brasil. O baixo índice de institucionalidade da LAI nas administrações municipais é capaz de reforçar este quadro, dado que, segundo a Controladoria Geral da União, 86% dos municípios brasileiros ainda não regulamentaram a LAI a nível local. Estes desafios, atrelados ainda ao recorrente uso indevido da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), recentemente em vigor, geram consequências significativas no ciclo das políticas públicas, sobretudo no que se refere à formação da agenda pública e à avaliação de projetos e serviços vinculados a elas.
Uma consequência desse cenário, do ponto de vista do controle da legalidade, é a abertura maior a práticas de corrupção e improbidade administrativa, uma vez que a obscuridade de informações cruciais para o acompanhamento da gestão dos recursos públicos dificulta a identificação e prevenção de atos ilícitos por órgãos de controle e pela sociedade civil. Além disso, a opacidade na prestação ativa das informações e o sigilo dado ao seu acesso por meio da transparência passiva impactam diretamente na avaliação do custo-efetividade das políticas públicas, o que com efeito, prejudica a alocação eficiente e eficaz dos recursos públicos a áreas prioritárias, afetando assim o bem-estar social.
De outro lado, no entanto, temos presenciado alguns municípios que têm trilhado caminhos para um Brasil mais digital e menos desigual no acesso à informação pública. Podemos citar o exemplo de Niterói/RJ, que democratizou o acesso aos dados da participação no plano plurianual, o caso de Volta Redonda/RJ, que tornou fácil a visualização dos dados socioeconômicos e de emprego da juventude ou o modelo de Porto Alegre/RS, que desenvolveu um Anuário Estatístico digital, instrumento vital para a prestação de contas que é capaz de contribuir para a transparência institucional e atuar como uma ferramenta eficaz no controle das decisões públicas. Estes municípios, adotando tecnologias de Business Intelligence, estão revolucionando a visualização de dados, transformando informações complexas em formatos acessíveis e compreensíveis. Tal abordagem não apenas fortalece a transparência e o engajamento cívico, mas também serve como um farol de inovação tecnológica e eficiência na gestão pública, apontando para um futuro em que a transparência não será somente uma promessa não cumprida da democracia – em referência a Norberto Bobbio[3] –, mas uma realidade concreta e benéfica a todos.
[1] ALVES, M. S. D. Do sigilo ao acesso: análise tópica da mudança de cultura. Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais, n. Transparência e Controle Social, p. 120–134, 2011.
SILVEIRA, P. A. D.; SILVA, R. L. da. A implementação da Lei de Acesso à Informação Pública no Brasil e a cultura do sigilo: análise dos portais do Poder Executivo Federal. Revista da Faculdade de Direito UFPR, v. 65, n. 3, p. 85, 2021.
TINÔCO, Erika Cruz da Silva. Entre segredo e transparência: as decisões sobre recursos submetidos à Comissão Mista de Reavaliação de Informações (2012-2018). 2021. 157 f., il. Dissertação (Mestrado em Ciência da Informação) — Universidade de Brasília, Brasília. 2021.
[2] CASTANHO, V. A transparência e os desafios dos sites públicos na sociedade da informação. RIL Brasília, v. 56, n. 222, p. 265–285, 2019.
LUNKES, R. J. et al. Transparência no setor público municipal: uma análise dos portais eletrônicos das capitais brasileiras com base em um instrumento de apoio à decisão. Revista da CGU, v. 7, n. 10, p. 88–108, 2015.
RAUPP, F. M.; PINHO, J. A. G. de. Accountability em câmaras municipais: uma investigação em portais eletrônicos. Revista de Administração, v. 48, n. 4, p. 770–782, 2013.
[3] BOBBIO, Norberto. O futuro da democracia (uma defesa das regras do jogo). Trad. Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1986. 171 p.
* Marcos Vinícius Delgado é Pesquisador THINK TANK ABES – IEA/USP e Doutorando em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – PPED/UFRJ. As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.