Fonte: Itforum
Por Aristóteles Moreira Filho*

Normas se baseiam na aplicação de uma carga tributária mínima global de 15% para grupos multinacionais com receita anual a partir de € 750 milhões

Imagem: Shutterstock

 

Desde outubro de 2021, a OCDE e o G20 vêm trabalhando no desenho de um quadro de referência internacional (GloBE) que vise assegurar níveis mínimos de tributação para grupos multinacionais operando na economia globalizada e digitalizada. Seu produto de maior impacto é o imposto mínimo global, que forma o Pilar 2 do projeto, ao qual o Brasil acaba de aderir através da Medida Provisória nº 1.262/2024.

Ao objetivar uma carga tributária efetiva mínima de 15%, o regime faz um chamamento à revisão dos incentivos fiscais mundo afora, visando manter a efetividade desses instrumentos num cenário de limitação dos chamados gastos tributários. A Lei do Bem, já há alguns anos defasada vis-à-vis os seus equivalentes no plano internacional, encontra no GloBE um novo impulso para a sua reforma, na medida em que a ampla implementação do Pilar 2, nos países exportadores de capital, passa a exigir do Brasil agilidade e racionalidade na reestruturação dos incentivos fiscais que operam via redução do lucro tributável das empresas, ante a iminência da perda de efetividade do nosso mecanismo de fomento tributário a P&D.

As normas do Pilar 2 se baseiam na aplicação de uma carga tributária mínima global de 15% para grupos multinacionais com receita anual a partir de € 750 milhões. O percentual é calculado em cada país em que o grupo atue, de modo que, uma vez apurada tributação da renda inferior a 15% por uma subsidiária ou filial em um dado país, haverá a aplicação, pelo país sede da controladora, de um Imposto Complementar equivalente à diferença entre a carga tributária efetiva e a carga tributária mínima.

O regime permite igualmente que o próprio país da geração da renda aplique o imposto complementar, denominado então Imposto Complementar Mínimo Doméstico Qualificado (em inglês QMDT), o que preveniria a cobrança do Imposto Complementar pelo país sede da controladora e assim a transferência da base tributária para o exterior.

Sempre que a fruição de incentivos fiscais conduza a uma carga tributária efetiva inferior a 15%, haverá, portanto, o risco de que a aplicação do Imposto Complementar anule os efeitos do incentivo concedido.

Os efeitos restritivos do GloBE não significam, porém, que não se poderá mais utilizar incentivos fiscais como instrumentos de políticas públicas, inclusive industrial e de inovação. A análise das regras do Pilar 2 indica que o seu impacto depende do desenho do regime de incentivo, sendo relevantes aspectos como: (i) perfil do usuário do incentivo, especialmente dimensão e natureza (tangível ou intangível) da atividade desenvolvida; (ii) base de cálculo e possibilidade de cumulação com outros incentivos; (iii) forma de contabilização do incentivo e seu impacto no tributo sobre a renda. É aqui que residem exatamente as vulnerabilidades, os pontos de atenção e o potencial de otimização do incentivo da Lei do Bem nesse cenário pós Pilar 2.

Uma das críticas que se faz à Lei do Bem é o fato de ter sua fruição restrita a grandes empresas. Esse atributo, que decorre da exigência da opção pelo lucro real, torna o regime vulnerável ao impacto do Pilar 2, haja vista que boa parte dos usuários da Lei do Bem são grandes grupos multinacionais, brasileiros e estrangeiros.

As regras do Pilar 2 detêm um mecanismo que deduz da base do Imposto Complementar o volume de atividade econômica substancial desenvolvida pela empresa, sob a forma de folha de salários e ativos tangíveis. Isso significa que, se por um lado a exigência de gastos com P&D protege em alguma medida a Lei do Bem do mecanismo do Pilar 2, por outro lado segmentos da economia digital, cujo investimento está voltado para intangíveis, serão particularmente atingidos pelas novas regras.

A base de cálculo da Lei do Bem é formada pelo volume absoluto dos gastos de P&D, sem um teto ou exigência de incremento. O benefício da Lei do Bem pode ser cumulado com outros regimes de incentivos fiscais existentes no país, a exemplo dos incentivos para desenvolvimento regional, como Sudam e Sudene, e regimes setoriais, como o automotivo e o de tecnologia da informação. São fatores que, aptos a excluir 100% da tributação da renda, potencializam o impacto do Pilar 2 e exigem monitoramento pelas empresas.

Por fim, um dos pontos que tornam a Lei do Bem ser particularmente vulnerável às normas do Pilar 2 é a sua contabilização abaixo da linha do lucro (below-the-line), reduzindo o volume de tributação da renda e assim a carga tributária efetiva a se sujeitar ao percentual mínimo de 15%. Substituir o regime de dedução adicional de IRPJ e CSLL por um de crédito financeiro passível de ressarcimento em dinheiro permitiria manter o benefício econômico para a empresa sem impacto direto no lucro tributável e, portanto, na carga tributária efetiva. O crédito financeiro restituível, contabilizado como subvenção governamental acima da linha do lucro (above-the-line), nos termos do CPC 07/ IAS 20, além de mitigar o impacto do Pilar 2, otimiza a liquidez do benefício da Lei do Bem, que se torna fruível mesmo quando apurado prejuízo pela empresa, mudança de há muito reivindicada pelo setor de C, T & I.

Estimativas da Receita Federal do Brasil apontam para um universo de cerca de 3 mil multinacionais atuando no Brasil que se enquadram no perfil de grupos sujeitos às regras do Pilar 2, das quais cerca de 80 são grupos de capital brasileiro. Decerto que fração significativa dessas empresas é usuária dos benefícios da Lei do Bem e será atingida pelas novas regras internacionais.

O Brasil já iniciou a implementação do Pilar 2 em sua legislação interna, inclusive através da aplicação do Imposto Complementar Mínimo Doméstico Qualificado, instituído via adicional da CSLL por via da Medida Provisória nº 1.262/2024. Tal iniciativa, se pode mitigar a transferência da base tributária para o exterior, não remedia a perda de eficácia do incentivo da Lei do Bem, lembrando que os projetos de reforma da Lei nº 11.196/2005 que estão em tramitação no Congresso Nacional não endereçam, na forma em que se encontram redigidos, os desafios postos pelo regime do Pilar 2, nos termos aqui expostos.

O risco para o Brasil decorre do fato de que países como Alemanha, Canadá, Coreia do Sul, França, Itália, Japão e Reino Unido já implementaram o Pilar 2 e iniciaram a aplicação do regime em 2024, com impacto nas operações brasileiras dos grupos multinacionais sediados nesses países, bem como nas operações internacionais de grupos brasileiros com holdings estabelecidas nesses países. Na mesma toada, muitos países já adaptaram seus regimes de incentivo fiscal à inovação para as regras do Pilar 2, assegurando a atratividade e a eficácia de suas políticas nesse novo quadro de referência jurídico-institucional. A inércia brasileira custará a nossa competitividade e a renúncia de uma escassa base tributária aos países concorrentes no cenário internacional.

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*Advogado e pesquisador do Think Tank ABES. Doutor em direito pela USP. Autor do livro “Direito da Inovação: Tributação, Tecnologia e Desenvolvimento”, publicado pela editora Quartier Latin (2023). As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.

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