Selo IASegurança e Cidadania

Por Prof. Dr. Marcos César Alvarez* e Marcelo Batista Nery**

Hoje, diante de cenários recorrentes de crise e da normalização da vigilância, as questões levantadas por Foucault continuam relevantes

Imagem: Shutterstock

 

A obra Vigiar e Punir: Nascimento da Prisão, publicada há 50 anos por Michel Foucault (1926–1984)1, é um marco teórico fundamental para compreender as transformações nos mecanismos de poder e de controle social das sociedades modernas. Nela, Foucault propõe um deslocamento analítico do estudo do poder: ao invés de focar as investigações exclusivamente nos mecanismos repressivos tradicionais — como leis e sanções —, ele destaca os aspectos que operam por meio das práticas cotidianas de disciplina e de vigilância. Sua análise revela como essas práticas moldam subjetividades, instituições e processos. 

Hoje, diante de cenários recorrentes de crise e da normalização da vigilância, as questões levantadas por Foucault continuam a suscitar reflexões relevantes. O uso de tecnologias de monitoramento (captação de dados e reconhecimento facial, por exemplo) e a gestão algorítmica atualizam e ampliam os dilemas éticos que ele já antecipou.

Para aprofundar as reflexões aqui propostas, é fundamental compreender a própria noção de “disciplina” que ele propõe. Em Vigiar e Punir, ela é concebida como uma tecnologia de poder ou social que transcende instituições específicas e se infiltra em diversos espaços — como escolas, fábricas e hospitais. Atua como uma técnica de normalização, organizando-nos no espaço e no tempo: prescrevendo ritmos, movimentos e comportamentos de forma contínua e minuciosa. 

Essa análise emerge no contexto político da França pós-1968, período marcado por reformas institucionais, pressões por maior participação democrática, pluralismo social — com a crise do modelo gaullista — e o questionamento das estruturas tradicionais de autoridade. Foucault se engajou ativamente nas lutas sociais contra os sistemas de confinamento psiquiátrico e carcerário. Sua crítica às instituições — entendidas como engrenagens de um sistema mais amplo de poder — ainda ecoa com força.

De forma complementar, em seus cursos posteriores no Collège de France, Foucault introduz outras formas de poder, como as “tecnologias de segurança”, distintas da disciplina por se voltarem à gestão das populações como um todo. Se a disciplina incide sobre indivíduos, essa tecnologia opera com variáveis coletivas e probabilísticas — como o número de casos de uma doença, a quantidade de pessoas afetadas por desastres ou os índices de criminalidade. O foco desloca-se, assim, para a regulação de riscos, a antecipação de eventos e a organização de respostas preventivas. Para isso, recorre-se a ferramentas de conhecimento como as estatísticas.

As ideias de Foucault mantêm sua pertinência diante dos desafios do mundo digital. À medida que a tecnologia avança, os mecanismos de poder tornam-se mais complexos. A coleta massiva de dados, os sistemas de reconhecimento facial e as plataformas de monitoramento articulam normas disciplinares a cálculos probabilísticos e a políticas públicas que reforçam uma lógica de segurança cada vez mais ostensiva. As análises em tempo real e a construção de modelos preditivos, longe de romperem com essa lógica, frequentemente a reproduzem — influenciando decisões que afetam grupos sociais marginalizados, muitas vezes sem transparência nem responsabilização.

A inteligência artificial (IA) aplicada em câmeras de segurança — especialmente aquelas baseadas em visão computacional e aprendizado de máquina — vem sendo utilizada para analisar e identificar padrões de comportamento. Entre suas funções, estão a detecção de aglomerações repentinas, deslocamentos fora do fluxo previsto, padrões de vestimenta e comportamentos considerados atípicos. Ao fazer isso, essas tecnologias voltam a agrupar, sob critérios de risco ou de anomalia, populações díspares — como os considerados desviantes, loucos ou doentes, criminosos, pobres etc.

Esse uso da IA levanta preocupações significativas, especialmente no que diz respeito à amplificação de preconceitos e de desigualdades presentes nos dados. Sistemas treinados com conjuntos de dados historicamente discriminatórios tendem a reproduzir e intensificar estigmas sociais, tornando-se instrumentos seletivos de controle. Indivíduos e grupos podem se tornar alvos desproporcionais de abordagens, de investigações ou de restrições a direitos não com base em evidências objetivas, mas em inferências derivadas de padrões históricos de exclusão, de estigmatização e de desigualdade.

A propósito, o debate sobre IA também pode ser enriquecido à luz da noção de Foucault de “dispositivos” — arranjos heterogêneos de saberes, de práticas, de técnicas e de instituições que estruturam modos de vida e de relações sociais. Nesse contexto, a tecnologia não apenas mede ou observa: ela classifica, hierarquiza e intervém, tornando-se um agente ativo na produção de normas e da própria vida social. O poder, nessa perspectiva, não opera de forma vertical, mas circula, infiltra-se e molda condutas e expectativas cotidianas.

Para o bem e para o mal, as tecnologias digitais não apenas vigiam e normatizam comportamentos, mas também identificam desvios — muitas vezes com base em padrões questionáveis — e induzem condutas consideradas desejáveis, segundo interesses controversos, por meio de sistemas de pontuação, de recompensas simbólicas e/ou de exclusões silenciosas. Como já apontava Foucault, trata-se de um poder que não se limita a reprimir; ele também produz. Produz verdades, trajetórias, identidades e desigualdades.

Em síntese, no semicentenário do conhecido livro de Foucault, sua análise continua a ser um instrumental poderoso para compreender as relações entre tecnologias, risco e controle. A cada releitura de Vigiar e Punir, encontramos algo novo para refletir, um texto que se renova constantemente ao ser lido por sucessivas gerações e, assim, não permanece nunca o mesmo. 

Em tempos de hiperconectividade e de algoritmização da vida cotidiana, suas contribuições ajudam a identificar continuidades e transformações nos modos contemporâneos de governança e de regulação. É necessária uma ponderação mais aprofundada sobre as consequências sociais do uso dessas tecnologias, como a segregação e a criminalização de populações já estigmatizadas. Mais do que nunca, as reflexões de Foucault nos instigam a problematizar os vínculos entre os dispositivos de poder e de saber e a produção de formas de subjetividade. Apontam permanentemente para a atualidade, para as possibilidades e os riscos presentes nas tecnologias como práticas sociais e políticas.

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*Sociólogo, professor Livre Docente no Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP), e desenvolve atividades de ensino, pesquisa e extensão relacionadas aos domínios da Sociologia da punição e do controle social. É coordenador do Núcleo de Estudos da Violência (NEV) da USP.

**Pesquisador no Think Tank da ABES e na Cátedra Oscar Sala do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), coordenador de Transferência de Tecnologia e Head do Centro Colaborador da OPAS/OMS (BRA-61) do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.

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