Fonte: itforum
Por Victo Silva* e Tulio Chiarini**
Levantamento inédito de dados revelou a existência de mais de 500 empresas controladoras de plataformas digitais
Recentemente, em parceria com Leonardo Ribeiro publicamos o artigo “Compreendendo a economia brasileira de plataforma: tendências e desafios regulatórios” na revista Nova Economia da Universidade Federal de Minas Gerais. Nosso objetivo foi traçar o perfil das empresas de plataformas digitais brasileiras e discutir as opções e os desafios para regulá-las.
O levantamento inédito de dados sobre essas empresas no Brasil revelou a existência de mais de 500 empresas controladoras de plataformas digitais. Essas plataformas representam um modelo organizacional que fomenta, administra e controla uma rede de agentes econômicos, facilitando transações entre dois ou mais grupos e estão presentes em todos os setores, como a Singu, nos serviços de beleza e bem-estar, ou a Loggi, no setor de entregas de mercadorias.
Enquanto consumidores desfrutam das conveniências oferecidas pelas plataformas, o setor privado as vê como pontos de fricção nas redes on-line, capazes de canalizar fluxos de dados dos usuários para diversos fins. Como os dados são a fonte primária da inovação digital, as empresas de plataforma estão bem posicionadas para minerar e explorar essa matéria-prima diretamente na fonte.
O levantamento realizado traz questões interessantes, como a presença relevante de startups baseadas neste modelo. As 556 empresas de plataforma mapeadas pelos autores estão distribuídas por uma grande quantidade de setores, conforme a Tabela 1.
A categoria “comércio e shopping” é a maior, incluindo uma ampla gama de marketplaces, desde os mais gerais, como Magalu e MadeiraMadeira, aos de nicho, como Trocafone e InstaCarros. Em segundo e terceiro lugares vêm as redes sociais de comunidades (como a Umatch) e os serviços-meio, como serviços de nuvem. Outro dado interessante é a penetração da “plataformização” em setores altamente regulados, como educação, saúde e finanças: em conjunto, estes três setores contam com 10% de todas as empresas de plataforma brasileiras.
Embora o setor varie, o tipo de plataforma adotado pelas empresas de plataforma brasileiras parece seguir majoritariamente o modelo transacional, em detrimento do modelo inovativo (tabela 2). As plataformas transacionais reorganizam mercados previamente existentes, enquanto as de inovação criam mercados digitais oferecendo a terceiros recursos de fronteira para acessar um substrato tecnológico (EVANS; GAWER, 2016). Em termos mais simples, as inovativas criam um ecossistema de cocriadores (como a Google com sua plataforma Android/Play Store e milhões de desenvolvedores independentes de app), enquanto as transacionais são meramente intermediárias em uma transação (a monetização ocorre via uma taxa sobre, digamos, um serviço de entrega). Não é preciso muita elaboração para compreender que as primeiras geram mais valor e dele e se apropriam.
Quando olhamos para as empresas de plataforma nacionais (Tabela 2), vemos o domínio do modelo transacional. Cabe então o questionamento: onde estão as plataformas inovativas brasileiras?
Mercado, complexidade tecnológica e risco
Não sabemos ainda os motivos que levam as empresas brasileiras controladoras de plataformas digitais a optarem pelo modelo “mais lean” de plataformas transacionais, mas é possível levantar algumas hipóteses.
A primeira está relacionada ao mercado e à competição enfrentada por cada tipo de plataforma. O Brasil começou a desenvolver plataformas relativamente mais tarde se comparado aos Estados Unidos. Uma notável exceção é o setor de mecanismos de busca, na qual a plataforma Cade? antecedeu o Google em três anos. No entanto, de maneira geral, as plataformas brasileiras tendem a emular iniciativas que surgiram no exterior, sobretudo nos Estados Unidos, conforme a Tabela 3.
Ser o primeiro em um mercado é uma vantagem reconhecida pelos estudos de inovação. Na era das plataformas digitais, ser o entrante é ainda mais crucial devido aos efeitos de rede, que fidelizam (aprisionam) consumidores e usuários a uma plataforma consolidada. Gigantes como Google, Amazon e Apple construíram barreiras de entrada tão altas que dificultam a competição para empreendedores brasileiros que se aventuraram na economia de plataformas.
A estratégia das empresas brasileiras, então, tem sido direcionar a plataformização para setores naturalmente protegidos da competição com esses gigantes, devido às características do mercado em que atuam. Por exemplo, o iFood alavanca efeitos de rede locais: não faz diferença, por exemplo, para os restaurantes de Belo Horizonte quantos motoristas a Uber Eats consegue mobilizar em São Francisco, na Califórnia. No entanto, mesmo operando localmente, o iFood teve que travar uma batalha com a Uber Eats cidade por cidade (e continua enfrentando competidores, como a colombiana Rappi e plataformas regionais como a Aiqfome). Já para plataformas inovativas, como a Apple, seu iOS e a Apple Store, os efeitos de rede são globais. Uma loja de aplicativos concorrente teria que ser mais atraente para os consumidores do que a Apple Store, que mobiliza desenvolvedores do mundo todo. Em outras palavras, o concorrente teria que quebrar a força do efeito de rede global da Apple.
Outra hipótese está relacionada ao grau de complexidade para o desenvolvimento tecnológico: as plataformas transacionais, por atuarem principalmente como intermediárias em transações, exigem menos investimento em desenvolvimento tecnológico e infraestrutura, tornando-se uma opção mais atraente em um cenário de recursos limitados. Relacionada a essa hipótese, está a limitada disponibilidade de capital de risco e investimentos em inovação no Brasil o que pode restringir a capacidade das empresas de desenvolver plataformas inovativas, que requerem um ecossistema robusto de cocriadores e maior investimento em pesquisa e desenvolvimento. Como em plataformas inovativas todos os produtos e serviços são cocriados com complementadores (pense no caso de desenvolvedores de jogos e a Sony) uma falha na gestão pode levar ao colapso do ecossistema. Como os riscos são maiores, é preciso capital mais afeito ao risco.
Estas hipóteses ajudam a explicar por que as plataformas transacionais dominam o cenário brasileiro, mas também destacam a necessidade de criar condições mais favoráveis para o surgimento de plataformas inovativas, que podem gerar maior valor e impulsionar a inovação no país.
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*Pesquisador no Think Tank da ABES e Pós-doutorando pela Radboud University (Holanda). Doutor em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (2022), Mestre em Política Científica e Tecnológica pela Universidade Estadual de Campinas (2018).
**Mestre em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e em Gestão da Inovação pela Scuola Superiore Sant’Anna e Doutor em Economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É analista em ciência e tecnologia cedido ao Ipea desde 2021. No CTS, desenvolve estudos sobre políticas de inovação tecnológica e dedica-se às complexas relações entre desenvolvimento tecnológico e transformações socioeconômicas, com foco na economia e sociedade de plataformas e em como a “plataformização” está alterando e criando mercados e setores. As opiniões expressas neste artigo não refletem, necessariamente, os posicionamentos da Associação.
Referências
- EVANS, Peter C.; GAWER, Annabelle. The Rise of the Platform Enterprise. A global survey. , The Emerging Platform Economy Series No. 1. New York: [s.n.], 2016.
- Silva, V., Chiarini, T., Ribeiro, L. (2024a) “Understanding Brazil’s Platform Economy: Trends and Regulatory Challenges”. Nova Economia, v. 34, p. 1-31. https://doi.org/10.1590/0103-6351/7958
- Silva, V., Chiarini, T., Ribeiro, L. (2024b) “Economia de plataformas: A eclosão de empresas brasileiras controladoras de plataformas digitais”, in Kubota, L. (org.), Digitalização e Tecnologias da Informação e Comunicação: oportunidades e desafios para o Brasil, IPEA/ECLAC.