Por Marcelo Batista Nery* e Sergio Adorno**
No dia 25 de outubro, celebramos a democracia. Essa data nos traz à memória o ano de 1975 e o trágico assassinato, sob tortura, do jornalista Wladimir Herzog, que se apresentou voluntariamente para depor no Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), órgão de repressão política subordinado ao Exército. Esse episódio nos lembra os tempos da ditadura civil-militar (1964-1988), um regime que, por sua natureza, se opõe radicalmente aos princípios que regem as democracias.
A trajetória da democracia é intrinsecamente ligada ao passado. Segundo estudos recentes realizados pelo cientista político John Keane, suas raízes se manifestaram sob a forma de autogoverno popular no Oriente, em áreas geográficas que hoje correspondem à Síria, ao Iraque e ao Irã. Mais tarde, por volta do ano 1500 a.C., migrou para o leste, alcançando parte do subcontinente indiano. Expandiu-se também para o oeste na direção de Biblos e Sidon, antes de chegar a Atenas, por volta do século 5 a.C., firmando uma tradição ocidental que se reinventou na era moderna.
Os movimentos revolucionários do final do século XVIII produziram radicais alterações em todo o edifício aristocrático dominante na Europa ocidental e central, transformando as desigualdades sociais em um problema político e ampliando as bases sociais dos processos participativos e decisórios. Em linhas gerais, a democracia moderna está alicerçada nos princípios de liberdade, igualdade e isonomia. Ela mantém relações complexas com o mercado e a economia, com a sociedade e a política, por meio de suas instituições, e se sustenta em uma cultura política que valoriza direitos para um maior número de pessoas, independentemente de clivagens socioeconômicas, raciais e éticas, de gênero e geração. Seu maior desafio é conviver com dois obstáculos: por um lado, a persistência de desigualdades sociais, inclusive de poder entre cidadãos; por outro, a persistência de inclinações autoritárias de seus governantes.
No mesmo período, a sociedade moderna viu nascer a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), reafirmada em 1948 com a Declaração Universal dos Direitos Humanos da Assembleia Geral das Nações Unidas. Apesar de as origens de ambos os processos não serem as mesmas, direitos humanos e democracia estão cada vez mais entrelaçados. Os princípios e agendas de direitos humanos constituem um catálogo de iniciativas capaz de enfrentar precisamente dois obstáculos: desigualdades sociais e de direitos, bem como limites ao poder autoritário.
O elenco de direitos é extenso e vem se expandindo com o reconhecimento de novos sujeitos passíveis de proteção pelas leis, políticas públicas e governos. Compreendem direitos clássicos civis, como liberdade de expressão, liberdade de associação, direito de ir e vir, proteção da privacidade e intimidade, bem como proteção uma miríade de violações, que incluem crueldade, discriminação, misoginia, genocídio, migrações forçadas, detenção arbitrária, guerras e terrorismo. Neste cenário, o direito à segurança e à justiça se firmou como um dos direitos humanos fundamentais e uma das garantias da existência de sociedades seguras, com qualidade de vida, igualdade de direitos e sem restrições às liberdades civis e públicas.
No entanto, à medida que as sociedades modernas foram se tornando mais complexas, os problemas pertinentes à segurança também se tornaram mais presentes e igualmente complicados. Em não poucas sociedades nacionais, o crescimento da delinquência e do crime organizado, das mortes intencionais, dos ataques ao patrimônio privado e pessoal, afetam os sentimentos de insegurança e comprometem a legitimidade das agências encarregadas de controle legal da ordem pública. Esse cenário inclui sociedades como a brasileira. No entanto, aqui, esses problemas parecem agravados devido às características históricas e singulares da estrutura e organização policial, o que inclui uma alta taxa de letalidade em confrontos com suspeitos de haver cometido crimes, uma considerável opacidade em suas ações e um fraco controle externo sobre suas atividades e operações de seus agentes.
As corporações policiais permanecem bastante fechadas, apesar das pressões da sociedade civil organizada e das políticas de direitos humanos para que se tornem mais transparentes e responsáveis. Mais recentemente, essa situação se agravou com a inclinação de muitos deles para as ideologias de extrema-direita. A partidarização e ideologização de parte do corpo institucional são problemas para a persistência da democracia com seus valores e princípios. No entanto, é possível encontrar respostas no cerne desse contexto desafiador.
A despeito da persistência de fortes traços herdados do passado autoritário e enraizados nas instituições de lei e ordem, é inegável que há mudanças em curso, certamente por força dos rumos da democracia nesta sociedade. Hoje tem se observado a existência de policiais que ingressam na força policial com um nível de escolaridade mais elevado em comparação ao passado recente. Muitos deles possuem ensino médio completo, alguns inclusive são portadores de uma formação acadêmica ajustada aos novos tempos, embora nem sempre adequada à natureza das atividades que precisam realizar como policiais.
Além do mais, parcelas de policiais mostram-se mais conectadas com os problemas da sociedade, especialmente aqueles relacionados às desigualdades nas grandes periferias urbanas. Eles conseguem se enxergar como parte de sua rede de relações sociais, participantes ativos na sociedade e envolvidos em movimentos comunitários e da sociedade civil. Tudo indica que buscam se manter atualizados sobre diferentes visões dos problemas de segurança, consultando fontes para além das corporativas. Embora essas mudanças ainda sejam de escala reduzida, indicam uma evolução no papel e na mentalidade dos policiais, que, lentamente, estão se tornando mais conscientes das complexas dinâmicas entre segurança e cidadania.
Uma vez que entendemos a importância dos agentes de segurança (e potenciais artífices) para a democracia, é crucial compreender também que estamos na era da informação e que, desde o início desta era, a ciência e a tecnologia estão presentes em quase todos os aspectos dessas dinâmicas. Por um lado, elas nos alertam para muitos dos perigos que ameaçam as sociedades e os indivíduos; por outro, fornecem as bases para o desenvolvimento de tecnologias da informação (TI) capazes de analisar, planejar e executar as atividades cotidianas das forças policiais encarregadas de garantir a ordem e a segurança públicas. Além disso, essas TIs podem diagnosticar e adaptar as práticas policiais de forma a minimizar a opressão praticada contra cidadãos mais vulneráveis da população, bem como a corrupção e a cumplicidade com o crime e a omissão.
Apesar dos percalços atuais enfrentados pela democracia, não apenas no Brasil, o enfrentamento dos graves problemas de segurança passa necessariamente por reformas institucionais. Embora essa seja uma tarefa de outros agentes, como políticos profissionais, governantes, planejadores e executores de políticas públicas de segurança, junto com a sociedade civil organizada, é inegável que os principais agentes são os policiais que, comprometidos com valores democráticos e o respeito aos direitos humanos, estejam aptos a empregar novas TIs e promover mudanças tanto na estrutura das organizações policiais quanto nas dinâmicas sociais mais amplas, inclusive a recusa às relações e práticas herdadas do regime autoritário.
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* Marcelo Batista Nery é pesquisador no Think Tank da ABES, coordenador de Transferência de Tecnologia e Head do Centro Colaborador da OPAS/OMS (BRA-61) do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo.
** Sergio Adorno é Professor Titular em Sociologia da FFLCH (Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo) e Coordenador científico do NEV-CEPID/USP.