Por Aristóteles Moreira Filho*
Após aprovação do texto base na Câmara dos Deputados, a reforma tributária do consumo parece que se encaminha para aprovação pelo Poder Legislativo. O que resta de trâmite abre ainda possibilidades quanto ao desenho final dessa vertente axial do sistema tributário brasileiro; e há controvérsias com relação a pontos do projeto. Pouco se ouviu até agora, porém, sobre os efeitos da PEC sobre a capacidade inovativa da economia brasileira. O impacto do sistema tributário na propensão dos agentes econômicos a investirem em novas tecnologias, produtos e processos, implica a necessidade de tratarmos do tema também sob tal perspectiva, dada a premência da inovação e da sofisticação produtiva como meio para alçar a economia a níveis superiores de competitividade, renda e bem-estar.
A função da generalidade do sistema impositivo é a de prover o Estado de recursos sem provocar distorções nas decisões dos agentes privados. No que diz respeito à dimensão inovativa do sistema econômico, a tributação não apenas deve abster-se de inibir os investimentos em tecnologia e inovação, mas também promover uma oneração do processo inovador que seja compatível com a função estratégica que a tecnologia e a inovação exercem para o desempenho e a competitividade da economia. Nesse contexto, destacam-se determinados aspectos do regime tributário das atividades inovativas, dentre os quais: dedutibilidade dos gastos com P&D; compensação de prejuízos; custo fiscal do financiamento via capital próprio em comparação com o capital de terceiros.
Quando se trata da tributação do consumo, é a cumulatividade que representa a principal fonte de distorções para o sistema econômico, que atinge igualmente a capacidade inovativa da economia. A natureza plurifásica da tributação sobre o consumo, via cobranças sucessivas ao longo da cadeia de circulação do bem ou serviço, predispõe o tributo a uma incidência em cascata que incrementa exponencialmente o custo da imposição, afetando não apenas o preço imediato do item onerado e a propensão à sua utilização pelos agentes, mas todo o equilíbrio econômico de mercado, provocando uma perda de eficiência alocativa e a redução do nível de bem-estar da economia. Apenas a técnica da não cumulatividade, via creditamento do tributo incidente nas operações anteriores, é capaz de inibir tais distorções.
A tributação sobre o consumo no Brasil é formada por ICMS, IPI, PIS, Cofins e ISS; todos estes apresentam problemas de cumulatividade. E isso se dá porque tais tributos (i) não incidem de forma ampla sobre a cadeia de valor, senão de forma segmentária sobre determinadas fases produtivas ou funções empresariais; e (ii) apresentam restrições sobre o direito de crédito que deve assegurar a tributação não cumulativa. Tais problemas se revelam no tratamento recebido pelos típicos gastos inovativos.
O ICMS incide sobre a circulação de mercadorias e adota, com poucas exceções, o critério do crédito físico para a não cumulatividade, o que significa que apenas aquisições que se integram fisicamente à mercadoria vendida geram crédito do imposto. O resultado é a exclusão do crédito relativo às aquisições de insumos dedicados aos esforços inovativos, que não resultam diretamente em operações de saída. Mesmo quanto às máquinas e equipamentos empregados em P&D, o entendimento dos Estados é de que, porque não são usados na comercialização ou industrialização, são considerados alheios à atividade do estabelecimento e, portanto, não geram crédito nos termos do art. 20, §1º da LC 87/96.
O IPI incide apenas sobre o produto industrializado e adota, como o ICMS, o critério do crédito físico, que, quanto à produção industrial, abrange o trinômio matérias-primas, produtos intermediários e materiais de embalagem. O escopo estreito da não cumulatividade do IPI, vinculada à função produtiva, não coincide com a função inovativa da empresa. Dessa forma, nem insumos, tampouco máquinas e equipamentos utilizados em P&D, geram crédito de IPI.
O PIS e a Cofins são exigidos sobre a receita bruta e dessa forma exibem materialidade ampla de incidência, mas apresentam, quanto ao direito de crédito, limitações diversas, mesmo quando recolhidas sob o regime não cumulativo. Após ter a não cumulatividade submetida aos critérios de relevância e essencialidade pela jurisprudência do STJ, PIS e Cofins receberam na Instrução Normativa nº 2.121/2022 regras específicas sobre o conceito de insumo para efeito do direito de crédito. Quanto às aquisições destinadas às atividades inovativas da empresa, geram direito de crédito os insumos empregados em projetos de desenvolvimento que resultarem em ativo intangível sob a forma de insumo, bem destinado à venda ou serviço prestado a terceiros. A demonstrar o anacronismo do nosso sistema tributário, não há direito de crédito sobre os insumos quando o projeto falha ou é interrompido, sendo essa uma circunstância inerente ao risco e à incerteza típicos do processo inovativo. Quanto às máquinas, equipamentos e outros bens incorporados ao ativo imobilizado, geram crédito apenas quando utilizados na locação, produção de bens ou prestação de serviços, o que exclui aqueles empregados em atividades de P&D.
O ISS, por fim, é um tributo cumulativo, o que exclui o direito de crédito em qualquer circunstância, inclusive dos serviços técnicos utilizados como insumos nas atividades de P&D.
Como se vê, o escopo do direito de crédito na nossa tributação sobre o consumo tende a restringir-se aos gastos pertencentes ao núcleo da função produtiva da empresa, de modo que os gastos com atividades inovativas são tributados e sujeitos à cumulatividade. Como exemplo, temos que o contribuinte que adquirir equipamentos de laboratório, utilizados em atividades de P&D, não terá direito de crédito de IPI, ICMS ou PIS/Cofins, suportando o ônus de cada uma dessas imposições em percentuais estimados, respectivamente, em 4,17%, 18% e 9,25%; o que resulta em um custo adicional de 31,42% antes mesmo de iniciarem-se as atividades de pesquisa, algo que não encontra paralelo no mundo. Tomando como base uma elasticidade-preço do investimento em P&D de -0,4, aferida na pesquisa dos economistas franceses Mulkay e Mairesse (MULKAY, Benoît; MAIRESSE, Jacques. The R&D tax credit in France: assessment and ex ante evaluation of the 2008 reform. Oxford Economic Papers 2013, p. 2), pode-se afirmar que a reforma tributária tem o potencial de incrementar em cerca 12% os investimentos em P&D no Brasil, o que significa cerca de R$10 bilhões em investimentos adicionais, o dobro dos R$ 5,86 bilhões anuais correspondentes à desoneração da Lei do Bem.
O texto da PEC nº 45/2019, ao adotar a não cumulatividade ampla para CBS e IBS, tem o potencial de neutralizar os problemas apontados acima. Ponto de atenção merece ainda a contribuição sobre produtos primários e semielaborados, que perpetuará as distorções da cumulatividade quanto aos insumos que caírem sob sua incidência. Não menos importante é atribuir, por fim, aos segmentos intensivos em tecnologia e, dessa forma, estratégicos para a produtividade e a competitividade da economia como um todo, um tratamento compatível com sua função estruturante no sistema produtivo, o que significa atribuir um custo tributário competitivo vis-à-vis aquele praticado pelos nossos concorrentes no mercado internacional.
É fundamental que os formuladores de políticas despertem para o efeito destrutivo que a tributação indireta, com a sua cumulatividade sistêmica, impõe ao potencial inovativo da economia brasileira. E que tais premissas sejam mantidas na reforma tributária aprovada no Congresso Nacional, como um paradigma da tributação sobre o consumo na era da economia baseada no conhecimento.
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*Pesquisador do Think Tank ABES, Advogado, Doutor em Direito pela USP e autor do livro “Direito da Inovação: Tributação, Tecnologia e Desenvolvimento”, publicado pela editora Quartier Latin (2023).